sexta-feira, 23 de novembro de 2018

A Escola Sem Pensamento

Luis Felipe Miguel

O Ministério da Justiça tem inúmeras atribuições. Entre as mais importantes está zelar pelo exercício dos direitos.

Bolsonaro colocou como ministro Sérgio Moro, que já deixou claro que dá uma banana para tudo isso e terá como única prioridade a continuação daquilo que já fazia em Curitiba: criminalizar o PT sob o pretexto do "combate à corrupção".

Por isso, não espanta que o procurador Guilherme Schelb esteja cotado para o Ministério da Educação.

Schelb - um fundamentalista com ligações com a antiga TFP - entende alguma coisa de educação? Absolutamente nada.

Sua única preocupação é impedir o pensamento crítico nas escolas e manter o assédio moral sobre os professores, sob pretexto de combater a tal da "doutrinação" e a tal da "ideologia de gênero".

É coerente com um governo cuja única prioridade é a destruição - de direitos, de avanços, de pessoas, de grupos sociais.

A gente tenta se iludir, achando que "obscurantismo" pode ser hipérbole, mas o governo eleito não dá nenhuma chance.


Tem um ponto que precisa ficar claro na discussão sobre o famigerado Escola Sem Partido (sic): não existe doutrinação de esquerda na educação brasileira, nem nada próximo disso.

Parece que a lei da mordaça não será aprovada. A obstrução da oposição democrática tem funcionado. A inclinação do Supremo é considerar inconstitucional. A nomeação do ministro da Educação de Bolsonaro, hoje, também parece indicar que o novo governo não vai tentar empurrar a todo custo esta pauta.

Mas o estrago do Escola Sem Partido (sic) já é real, mesmo sem aprovação da lei. Estamos nos movendo em um universo mental em que a suposta doutrinação é um dado estabelecido, do qual se parte.

É como a carga tributária excessiva, o rombo da previdência, a eficácia superior do mercado... Estabelecer "fatos" e, assim, subtrair do debate a inquirição sobre o real estado das coisas é uma manobra básica da disputa discursiva na política.

Um exemplo disso está no artigo de Leandro Narloch, publicado hoje, intitulado "Esquerda precisa dar resposta consistente ao Escola sem Partido". É engraçado: Narloch dando conselho à esquerda. Por que a esquerda ouviria um conselho de Leandro Narloch? Aliás, por que qualquer pessoa, em sã consciência, ouviria algum conselho dele?

Posando agora de liberal muderninho, Narloch se coloca contra o Escola Sem Partido (sic). Segundo ele, leis não resolvem problemas. Mas a esquerda tem dado respostas ruins ao projeto, baseadas em "espantalhos". O certo, ensina o jornalista, seria admitir o "viés ideológico" e apresentar outras alternativas para superá-lo.

E confessa, com a falta de sofisticação que lhe é característica: "O Escola sem Partido [sic] já realizou o grande feito de ter levado o problema [da pretensa doutrinação] à agenda pública". Em suma: trata-se de manter a pressão pelo silenciamento do pensamento crítico, mas sem a coerção aberta. O modelo é o macarthista: não é proibido falar. Mas, se falar, apanha.

E onde está a tal doutrinação? Raras vezes eles se dão ao trabalho de explicar, o que faz parte do esforço de naturalização do veredito. Mas, quando se aperta um pouco, dá para perceber que o grito de "doutrinação" surge cada vez que o professor questiona o mundo e as verdades estabelecidas sobre ele.

Mas isso é exatamente o que faz a ciência.

E as ciências humanas, em particular, existem para desvendar o mundo social como produto humano, isto é, desnaturalizá-lo, entendê-lo como produto histórico, com vencedores e com vencidos e também, portanto, sujeito a mudança.

É o contrário de doutrinação. É o professor desempenhando seu papel de "guardião da dúvida", para citar a bela expressão que o deputado Chico Alencar gosta de usar em seus discursos - ecoando a "pedagogia da pergunta" de que falava Paulo Freire. E as perguntas começam com: por que o mundo é assim? Ele sempre terá que ser assim?

Sobre isto, lembro que, logo no começo de um importante texto intitulado "Duas lógicas da ação coletiva", Claus Offe e Helmut Wiesenthal observam: "O que torna a sociologia interessante é a sua função crítica". E explicam que o pensamento sociológico só passa a existir quando, com o triunfo da ordem liberal, torna-se necessário desvelar o contraste entre uma norma igualitária e uma realidade desigual.

Em suma: critica, desnaturalização, inquirição são as ferramentas próprias da ciência social. Um professor de história ou sociologia que se apoia no materialismo histórico é tão "doutrinador" quanto um professor de ciências que se apoia no heliocentrismo ou na teoria da evolução. Ele está transmitindo o estado da arte da disciplina.

Narloch, não custa lembrar, se projetou escrevendo obras de incrível desonestidade intelectual sobre a história do Brasil e do mundo, os "guias politicamente incorretos", coleções de anedotas descontextualizadas, quando não distorcidas, para provar que a esquerda é má. (Aliás, o website do Escola Sem Partido [sic] continua apresentando uma indicação de bibliografia, com apenas quatro títulos: dois deles são "guias" de Narloch.) Se, em vez de produzir panfletos, ele tivesse feito um pouco de pesquisa histórica verdadeira, certamente seria capaz de entender o que estou dizendo.

Há professores mais abertos ao diálogo e menos abertos ao diálogo, com mais jogo de cintura e com menos jogo de cintura, com mais repertório e com menos repertório. Na minha experiência, via de regra os mais autoritários estavam mais à direita, mas nem é esse o ponto. É necessário estimular o diálogo nos ambientes de ensino e aprendizagem, sem dúvida. Mas isso não tem nada, absolutamente nada, a ver com a suposta "doutrinação de esquerda".

O fantasma da doutrinação é simplesmente um ardil para transformar a escola em um deserto de ideias.

ATUALIZAÇÃO: No começo do texto, fiz referência à nomeação de Mozart Neves Ramos para o MEC. Menos de duas horas depois, ele foi "desnomeado", diante da reação negativa de fundamentalistas religiosos...

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