Estamos mais treinados para enfrentar tragédias e preparados para o imprevisto do que americanos, europeus ou asiáticos
Ao contrário das previsões catastrofistas de tantos analistas europeus e norte-americanos, incluindo alguns responsáveis de organizações internacionais, como a OMS, o continente africano tem-se mantido até agora quase à margem da atual pandemia. Nos países a sul do Saara, apenas a África do Sul levanta algumas preocupações. Nos restantes, designadamente nos de língua oficial portuguesa, o número de mortes é (para já) inexpressivo. Em Angola, Cabo Verde e na Guiné-Bissau ocorreram até ao momento apenas duas mortes. Em Moçambique, nenhuma. Em contrapartida, morreram desde o início do ano, nesses mesmos países, milhares de pessoas, vítimas de malária, tuberculose e de todas as restantes doenças que costumamos associar à pobreza e ao subdesenvolvimento.
Várias particularidades explicam a surpreendente resistência africana à Covid-19. Paradoxalmente, todas elas têm a ver com pobreza. Em primeiro lugar, o imenso isolamento. África é (foi sempre) um continente de difícil aceso. Viajar em África continua sendo sinônimo de aventura. Com o início da epidemia a situação agudizou-se: muitos aeroportos africanos simplesmente fecharam as portas. A larga maioria recebe apenas voos humanitários e para repatriamento de nacionais.
Outra particularidade importante é a juventude da população. Mais de 70% dos africanos têm menos de 30 anos. Alguns estudos sugerem ainda que o novo coronavírus tem dificuldade em contaminar pessoas portadoras de HIV, e aquelas que foram vacinadas contra a tuberculose — além dos fumadores. Esta é, aliás, a ironia mais divertida da tragédia que atravessamos: a possibilidade da nicotina voltar a ser vista como um medicamento.
A Covid-19 tem vindo a atacar com particular vigor os grandes centros financeiros e de poder: Londres, Nova York, Paris, Madri ou Milão, ao mesmo tempo que poupa crianças, jovens e, ao que parece, os povos africanos.
Resta saber o que acontecerá no dia seguinte, isto é, depois que o vírus desaparecer. Os mesmos profetas do ufanismo catastrofista insistem na ideia do grande desastre. Segundo eles, a crise que o mundo inteiro irá enfrentar provocará em vários países africanos a rápida derrocada de governos e instituições. Podem, sem dúvida, ocorrer tragédias. No início dos processos de confinamento, quando os diferentes governos africanos ainda hesitavam, sem saber muito bem que medidas deveriam ser tomadas, aconteceram tumultos e saques no Quênia e na África do Sul.
Acredito, contudo, na capacidade de resistência e de reinvenção dos povos africanos. Sem a pressão predadora de europeus, chineses e americanos — que estarão ocupados com a sua própria sobrevivência —, os países a sul do Saara terão algum sossego para repensar os modelos atuais de democracia e de desenvolvimento, retomando os ideais pan-africanistas dos primeiros combatentes da liberdade, como Amílcar Cabral, Senghor ou Mário Pinto de Andrade.
A queda do preço do petróleo forçará países como a Nigéria ou Angola a investirem na agricultura, no turismo e em outros setores até agora negligenciados.
Transformar as fraquezas em força é algo que todos os africanos aprendem a fazer desde cedo. Estamos treinados para enfrentar tragédias e mais preparados para o imprevisto do que norte-americanos, europeus ou asiáticos. Aprendemos a transformar o imprevisto em pão — é uma habilidade muito útil nos tempos que correm.
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