domingo, 9 de agosto de 2020

É difícil separar burrice, má-fé e suicídio coletivo na gestação dos fascismos

Cartazes dos anos 1920 e 1930 produzidos pela máquina de propaganda de Hitler contra judeus e comunistas

Bernardo Carvalho

Até agora ninguém contestou a correspondência entre a estupidez da gênese do nazifascismo e de hoje

Muita gente rechaça a facilidade com que se compara o que estamos vivendo com a gestação do nazifascismo. É compreensível. Invocam o rigor acadêmico para traçar diferenças, apontando uma série de características históricas da gênese do fascismo que não se verificariam entre nós.

O que talvez não percebam é que assim também municiam, entre outras coisas, a hipocrisia retórica de um ministro da Justiça capaz de lançar mão de excrescências da ditadura militar em defesa de uma suposta honra do chefe e contra antifascistas.

Que eu saiba, até agora ninguém contestou a correspondência entre a estupidez dos dois momentos históricos. Como se os exemplos recentes não bastassem, um pequeno ensaio escrito em 1937 por um dos autores mais inteligentes da história da literatura pode nos ajudar na confirmação de que a burrice continua a mesma.

“Não existe pensamento importante do qual a burrice não consiga se apossar; ela pode tomar diversas direções e vestir todas as roupas da verdade. Esta, por sua vez, tem apenas uma roupa por ocasião, um único caminho, e está sempre em desvantagem”, escreveu o austríaco Robert Musil (1880-1942) em “Sobre a Estupidez” (publicado no Brasil pela Âyiné, em 2016).

É difícil delimitar as fronteiras entre a burrice, a má-fé e o suicídio coletivo na gestação dos fascismos. Hoje, com as chamadas fake news, temos mais uma correspondência com elementos históricos aos quais não gostaríamos de ser associados.

A cara de pau dos estafetas das autocracias se manifesta na inversão das “roupas da verdade”. Basta o fascista dizer que é a favor do Estado democrático de Direito (dizer que defende os indígenas, a Amazônia e a liberdade de expressão, enquanto promove a extinção de povos indígenas, o desmatamento da floresta e o fim das liberdades individuais) para implodir as instituições democráticas.

Se você perguntar ao Queiroz se ele é contra a corrupção, ele certamente dirá que sim. E é capaz de jurar por Jesus que votou em Jair Bolsonaro para limpar o país do crime.

A falta de pudor é obviamente encorajada pelo financiamento e pela impunidade do anonimato nas redes, travestido de “liberdade de expressão”: “Num manual de psiquiatria outrora bastante conhecido, à pergunta ‘Que é a justiça?’, a resposta ‘Quando o outro é punido’ era citada como exemplo notório de imbecilidade, embora ela forme hoje a base de uma opinião jurídica muito debatida”, escreveu Musil em 1937.

O escritor viveu em Viena até a anexação da Áustria pela Alemanha, em 1938, quando se exilou na Suíça. O primeiro volume de sua obra-prima inacabada, “O Homem sem Qualidades”, saiu em 1930. Projeto literário imenso, o livro é assim definido por J.M. Coetzee no prefácio à edição argentina dos textos curtos do autor: “Um romance no qual a camada mais alta da sociedade vienense, dando as costas para as nuvens de tempestade que se avolumam no horizonte, reflete longamente sobre a forma que dará ao próximo festival de autocomplacência”.

Lembra alguma coisa ou é melhor não comparar momentos históricos tão díspares?

Vê-se que a burrice já não era privilégio de ignorantes nem atributo de pobres. Musil inicia seu ensaio com uma formulação cuja ironia talvez não esteja ao alcance dos nossos oportunistas de plantão: “Se a burrice não fosse tão parecida, a ponto de confundir-se com o progresso, o talento, a esperança e o aperfeiçoamento, ninguém desejaria ser burro”.

E assim como ninguém é inteligente sozinho, é mais fácil ser burro em grupo: “As condições de vida atuais são tão pouco claras, tão difíceis, tão confusas, que as burrices ocasionais do indivíduo podem facilmente acarretar uma burrice constitucional coletiva”.

Ao longo da década de 1930, Musil começou a temer pela conclusão de sua obra-prima. O que estava em questão no romance era a falência dos princípios iluministas: “Não é difícil concluir que a desesperança crescente de completar ‘O Homem sem Qualidades’ surgiu em parte do sentimento de que seu projeto, concebido no espírito do que considerava uma ‘suave ironia’, tivesse sido atropelado pelas quadrigas malignas da história”, escreve Coetzee.

A época pedia um estilo menos refletido e distanciado. Algo mais próximo e direto, “como a expressão da vida privada”, Musil anotou em seus diários no mesmo ano em que escreveu “Sobre a Estupidez”. Os tempos pediam que abrisse mão da reflexão irônica do romance, em nome da encenação do eu.

De novo, ocorre algo ou é melhor não insistir na comparação de momentos históricos tão distintos?

Bernardo Carvalho

Romancista, autor de "Nove Noites" e "Simpatia pelo Demônio".

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