sábado, 12 de setembro de 2020

Ditos, não ditos e mal ditos


Sérgio Augusto

Não foi Twain quem disse: ‘Parar de fumar é fácil; eu já parei centenas de vezes’

Circulou dia desses nas redes sociais uma profecia de Leonel Brizola, para mim até então desconhecida: “Se os evangélicos entrarem na política, o Brasil irá para o fundo do poço, o país retrocederá vergonhosamente e matarão em nome de Deus”.

Imagine ler tão apocalíptico vaticínio em meio ao turbilhão de denúncias de corrupção e outras calhordices envolvendo pastores, pastoras, bispos, o prefeito do Rio e políticos da chamada “bancada da Bíblia”, como o que nos engolfou na semana passada. Semana que, aliás, culminou com a obscena e eleitoreira anistia às dívidas de 1 bilhão de reais das igrejas aqui estabelecidas. Nosso Estado é laico, mas o Fisco não.

Entrar na política os evangélicos já entraram e a dominam faz tempo. O resto também confere. Matar em nome de Deus não foi o que Flordelis fez?

Houve quem dissesse que a frase do Brizola é apócrifa, sem nomear seu verdadeiro autor. Pode ser. Não tenho como provar o contrário. Mas ela é bem Brizola, na forma e no conteúdo. Além de profética.

Levar a fama por algo brilhante dito ou inventado por outra pessoa é sempre agradável. E mais frequente entre aqueles que já possuem um respeitável currículo de frasista, como Mark Twain, Bernard Shaw, Millôr, Sérgio Porto, Verissimo. Paulo Francis jamais reivindicou para si a autoria do axioma “intelectual não vai à praia, intelectual bebe”, que Jaguar, cansado de usurpá-lo involuntariamente, devolveu ao verdadeiro dono.

Não foi Twain, por exemplo, quem proclamou pela primeira vez que “parar de fumar é fácil; eu já parei centenas de vezes”. Tampouco foi ele quem escalonou estes três tipos de mentira: “A mentira simples, a mentira deslavada e as estatísticas” – que até hoje alguns lhe atribuem. Nunca se descobriu quem inventou a primeira boutade. Mas a desmistificação das estatísticas tem nome (Benjamin), sobrenome (Disraeli) e profissão (estadista e escritor britânico do século 19).

“Quando ouço a palavra cultura, puxo meu revólver”, ameaça que já vi imputada a Goebbels, ministro de Propaganda de Hitler, e a mais de um produtor de Hollywood em sua versão show business (com o talão de cheques no lugar do revólver), grudou para sempre na biografia do marechal Hermann Goering, que no entanto afanou-a do drama teatral Schlageter, de Hanns Johst, cuja estreia se deu em 1933, o Ano 1 do Terceiro Reich. Continuem atribuindo-a, por mérito, ao ministro da Aviação nazista.

A mais célebre tirada de Lincoln (“Pode-se enganar a todos por algum tempo; pode-se enganar alguns por todo o tempo; mas não se pode enganar a todos todo o tempo”) surgiu originalmente num tratado sobre a religião cristã, escrita pelo protestante francês Jacques Abbadie, um século e meio antes de Lincoln nascer. Quem mandou Abbadie não ser presidente dos EUA, vencer uma guerra civil e morrer assassinado num teatro?

O fatal desabafo heliocêntrico de Galileu, “Eppur si muove” (E no entanto ela se move), na verdade foi inventado por um escritor francês, um século depois da morte do físico florentino. Para que corrigir a póstuma e improcedente atribuição se o tal escritor francês não ganhou importância nem se encrencou com a geocêntrica Inquisição?

Ao tomar conhecimento, dia 8, da morte por covid do general Sydrião, chefe do Centro de Inteligência do Exército, vários engraçadinhos aproveitaram para repetir na internet o velho axioma, segundo o qual “inteligência militar” é uma contradição em termos. Atribuído a Groucho Marx, entre outros gozadores, quem de fato o lançou foi uma autoridade no assunto: o general John Charteris, responsável pela inteligência do Exército britânico durante a 1.ª Guerra Mundial.

Por algum tempo repetiu-se à exaustão que, no auge da “guerra da lagosta” com a França, há quase 60 anos, De Gaulle acusou o Brasil de não ser “um país sério”. Até que se descobriu o verdadeiro autor da observação: nosso embaixador em Paris, Carlos Alves de Souza. O Brasil já não era um “pays sérieux”, mas tinha bons diplomatas, além do que dotados de uma visão lúcida de Pindorama.

Por falar na França, Luís XIV jamais disse “O estado sou eu”, nem Maria Antonieta foi a primeira nobre francesa a mandar a choldra comer brioche. Ambos, porém, levaram para além-túmulo o que os historiadores ajudaram a espalhar. Sorte deles, pois não perpetraram frases mais memoráveis do que aqueles dois fake quotes.

Agora anotem nos cadernos de citações que vocês devem ter e manter com zelo de escriba:

Foi o poeta e filósofo naturalista Henry David Thoreau e não Thomas Jefferson quem disse primeiro que “o melhor governo é o que governa menos”, futuro mantra do liberalismo fundamentalista

Churchill não disse exatamente que nada tinha a oferecer aos britânicos, durante a 2.ª Guerra Mundial, a não ser “sangue, suor e lágrimas”. Foi algo parecido: “Nada tenho a lhes oferecer, a não ser sangue e trabalho, lágrimas e suor”. Mais abrangente, sem dúvida, mas sem a compacta elegância retórica da frase que o premiê inglês pinçou do romance Os Bostonianos, de Henry James. Não obstante, Churchill ganhou o Nobel de Literatura e James não.

Outra frase também atribuída a Jefferson (“O preço da liberdade é a eterna vigilância”), que no Brasil inspirou a UDN (o PSDB dos anos 40-50) e serviu de bordão ao brigadeiro Eduardo Gomes, na eleição presidencial de 1950, vencida por Getúlio Vargas, foi tirada de um discurso do político irlandês John Philpot Curran, no final do século 18. Detalhe irrelevante, mas curioso: Curran era gago.

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