Se continuar a provocar a histeria do povo, Bolsonaro pode conseguir segundo mandato, afirma pesquisador
Por Daniela Fernandes — Para o Valor, de Paris
Teorias da conspiração sempre existiram, mas se alastraram pelo mundo em 2020, em relação direta com a pandemia de covid-19. Elas conquistaram influência crescente na opinião pública, como revelam pesquisas em diferentes países. Para Rudy Reichstadt, fundador e diretor do Conspiracy Watch, Observatório de Teorias da Conspiração na França, existe hoje uma demanda social por teses desse tipo, já que elas permitem lidar com problemas complexos por meio de respostas simples, em que basta apontar os supostos culpados.
Reichstadt, autor do livro “L’Opium des Imbeciles” (Editora Grasset) - ou O Ópio dos Imbecis -, diz que as teorias da conspiração são a causa, e não a consequência, da atual crise de confiança nas instituições e elites políticas e científicas em vários países. Para o especialista, essas teses funcionam como “um agente ativo do aprofundamento da descrença em relação aos discursos de autoridades”.
Como a origem da pandemia, um suposto complô das elites com o objetivo de dominar as massas, as vacinas contra a covid-19 também foram alvo de várias teorias do tipo. As declarações do presidente Jair Bolsonaro sobre o imunizante feitas nos últimos meses são “grotescas e irresponsáveis”, na avaliação de Reichstadt. “O perigo me parece ainda maior quando um líder populista começa a acreditar realmente em suas próprias teorias conspiratórias.” Procurado para comentar, o Palácio do Planalto não respondeu até o fechamento desta edição.
A invasão do Congresso americano em janeiro por extremistas e grupos conspiratórios, como o QAnon, para impedir a certificação da vitória do democrata Joe Biden nas eleições presidenciais, mostra, na avaliação de Reichstadt, que teorias da conspiração deixaram de ser pequenas histórias sem consequências. “Ainda subestimamos os perigos do imaginário dos complôs e aonde isso pode levar”, alerta.
Ele afirma que os Estados Unidos, por serem uma antiga democracia, conseguiram resistir à onda de desinformação e de teorias de complô estimulada pelo ex-presidente Donald Trump. Mas ressalta que em países com uma cultura democrática mais recente, como o Brasil, “um Donald Trump bis, um Jair Bolsonaro, poderia conquistar um segundo mandato continuando a provocar a histeria da população”. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Por que a adesão às teorias conspiratórias vem crescendo, como revelam diferentes pesquisas?
Rudy Reichstadt: Teorias de complô já existiam antes da revolução das tecnologias da informação, mas circulavam de maneira clandestina e relativamente confidencial. Antes da internet, esse tipo de conteúdo, produzido por militantes de partidos extremistas, tinha pouca visibilidade e era pouco armazenado. As pessoas formavam suas opiniões ao ler jornais, essencialmente. O sistema tecnológico e midiático - internet de alta velocidade, redes sociais e smartphones - redistribuiu as cartas em termos de acesso à informação. A internet dá uma oportunidade histórica às teorias da conspiração porque ela permite influenciar de forma maciça. Além de compartilhar conteúdo falso, qualquer um também pode produzir teorias da conspiração.
Valor: A propagação mais rápida e em maior escala de teorias conspiratórias é uma consequência da crise de confiança em relação às elites e às instituições?
Reichstadt: É dito com frequência que essas teorias prosperam por causa da crise de confiança em relação ao discurso de autoridades, que se trata de um sintoma disso. Mas as teorias conspiratórias são, principalmente, a causa da desconfiança e um agente ativo do aprofundamento da descrença nas instituições. O complô é uma força política, é um discurso ideológico que explica que não devemos confiar nos responsáveis políticos, na ciência ou na imprensa. O paradoxo dessa atitude de desconfiança é que ela é acompanhada de uma grande credulidade em relação a teorias fantasiosas e que não apresentam provas do que é denunciado. Os conspiradores rejeitam figuras que representam a autoridade e as substituem por outras em que há uma crença quase religiosa. Foi o caso na França em relação ao professor Didier Raoult [infectologista autor de polêmicos estudos sobre a suposta eficácia da hidroxicloroquina no tratamento da covid-19]. Nos grupos conspiratórios, Raoult é considerado um homem providencial que teria o bom medicamento contra a covid-19, mas foi impedido de utilizá-lo por causa de uma sombria conspiração político-industrial.
Valor: Os que acreditam em teorias da conspiração se veem como vítimas ou perdedores da globalização, por exemplo?
Reichstadt: É um dos mecanismos psicológicos de defesa. Observamos que as pessoas que acreditam ter fracassado em suas vidas têm claramente mais tendência a aderir às teorias da conspiração do que as que pensam ser bem-sucedidas. Em uma obra, pesquisadores americanos em sociologia política afirmam que “teorias de complô são para perdedores”. Se a impressão é de ser malsucedido, de ser um perdedor da globalização, será mais fácil se persuadir de que finalmente somos vítimas de uma conspiração organizada por quem mexe os pauzinhos nos bastidores de reuniões internacionais como o G-20 e o Fórum Econômico de Davos. Se você imaginar que por trás disso há uma entidade escondida que decidiria tudo secretamente, isso nos dá a ilusão de que controlamos algo que não é controlável.
Valor: Mentir a si mesmo seria então para alguns uma maneira de se tranquilizar?
Reichstadt: Vimos isso na pandemia de covid-19. É muito reconfortante, de uma certa maneira, pensar que não é um vírus microscópico que mata, mas sim um plano diabólico organizado por uma entidade chamada “Big Farma” (as grandes indústrias farmacêuticas), que tem um nome ou o rosto de Bill Gates, e que na realidade bastaria colocar essas pessoas na cadeia para resolver o problema da pandemia. Pode parecer paradoxal, mas para alguns é tranquilizador pensar dessa forma, que bastaria neutralizar um pequeno grupo de indivíduos mal-intencionados para solucionar a atual pandemia. Mas é fugir da realidade.
Valor: O presidente brasileiro mudou recentemente seu discurso em relação às vacinas contra a covid-19, mas durante meses destacou o perigo do imunizante e chegou a falar que as pessoas poderiam se transformar em “jacarés”. Qual é a sua análise disso?
Reichstadt: São declarações irresponsáveis e grotescas de um homem que deveria presidir o destino de um dos países mais enlutados do mundo por causa da covid-19. Mas há algo mais preocupante. Compara-se, com razão, as Presidências do americano Donald Trump e de Bolsonaro. Mas, em relação ao imunizante, o ex-presidente Trump desestabilizou uma parte de seus militantes hostis às vacinas ao tornar o fornecimento das doses uma questão de soberania nacional, para se afirmar como um protetor dos interesses americanos. Bolsonaro tocou outra partitura, caindo abertamente na retórica de desconfiança de movimentos antivacina. A atitude de Bolsonaro indica que ele é menos pragmático e mais ideológico do que o ex-presidente americano. Isso não permite prever nada de bom para o futuro. Trump usou e continua usando de maneira cínica as teorias de complô, com uma indiferença total em relação ao que é falso ou verdadeiro. O perigo me parece ainda maior quando um líder populista começa a acreditar realmente em suas próprias teorias conspiratórias. Isso pode levar um país inteiro a uma realidade paralela construída por ele. Geralmente são os cidadãos mais vulneráveis que pagam o preço de uma volta violenta à realidade. E o preço é alto.
Valor: O documentário conspiratório francês “Hold-Up” (Assalto), que denuncia a pandemia de covid-19 como um complô da elite mundial para controlar a humanidade, viralizou nas redes. Como o senhor explica isso?
Reichstadt: Tenho alertado há anos que as teorias da conspiração colonizam o espaço público e nos influenciam de maneira crescente. Mas diziam que isso era exagero e que se resumia a um punhado de loucos na internet, que não adiantava nada tentar contradizê-los. Agora todos concordam em dizer que o problema é substancial. Em 2020, ultrapassamos mais uma etapa na impregnação dessas ideias, evidentemente em relação direta com a pandemia e a ansiedade que isso suscitou na sociedade. Mas também é o resultado de um trabalho político e ideológico que dura anos e que ganhou escala com as redes sociais. O filme rejeita sistematicamente e sem verificação os discursos científicos e políticos sobre a covid-19. As milhões de visualizações na internet em poucos dias mostram que “Hold-Up” foi muito além de seu alvo natural, ou seja, as pessoas que acreditam em teorias de complô. Muitos pagaram para ver esse filme e contribuíram para a sua realização em plataformas de “crowdfunding” (foi arrecadado 900% do objetivo inicial). Isso significa que ele correspondeu a uma demanda social por teorias conspiratórias. O mundo está pendendo nessa direção, e isso é preocupante.
Valor: O senhor diz que as teorias conspiratórias são utilizadas geralmente por ideologias extremistas. O complô está ligado à rejeição do “sistema”, elemento constante do discurso de políticos populistas?
Reichstadt: Quem é de extrema-direita ou de extrema-esquerda está, de uma certa maneira, excluído do jogo político. A situação não é mais representada segundo uma oposição tradicional entre esquerda/direita ou progressista contra conservador, mas como algo do tipo centro/periferia. Evidentemente, os que estão nos extremos se acham rejeitados e atacam o centro, que eles chamam de sistema. Daí os discursos antissistema, antielites, anti-intelectuais. Tudo isso é coerente com a teoria do complô: seu maniqueísmo simplista se alimenta da rejeição de complexidades. É compreensível que os populistas e os extremistas consigam aderir às teorias de complô, que não apenas simplificam as coisas, mas também justificam a situação de marginalidade na qual eles se encontram. A teoria conspiratória os conforta no pensamento de que se eles não estão representados no centro do jogo político é porque existem forças escondidas que os impedem de convencer o conjunto da sociedade da pertinência de suas ideias. Veja o exemplo de líderes populistas como ex-presidente Trump e Bolsonaro. Eles atacam o sistema, mas o sistema são eles. Eles têm discursos contra as elites, mas fazem parte dela.
Valor: A invasão do Congresso americano em janeiro por extremistas e adeptos de movimentos conspiratórios, como o QAnon, revela que essas teorias, por mais delirantes que sejam, são uma ameaça real contra a democracia?
Reichstadt: É preocupante ver os valores compartilhados que formam a base de todas as democracias ameaçados de explodir por causa do avanço das teorias de complô. A invasão do Congresso americano mostra que essas teorias deixaram, finalmente, de ser consideradas como simples pequenas histórias sem consequência. Trump contestou sua derrota com alegações infundadas de fraude, e seus apoiadores consideram que sua vitória foi roubada. Seus partidários vão viver os próximos quatro anos como uma espécie de ditadura que lhes foi imposta. Eles não vivem mais no mesmo mundo que o restante da sociedade americana. Isso é potencialmente gerador de grande violência porque se as pessoas não compartilham mais o mesmo mundo comum, não há mais diálogo democrático possível, há um diálogo de surdos. Não há acordo nem mesmo sobre os fatos. Se as pessoas não se falam, não se ouvem, não se entendem mais, elas estimam que só resta a violência para serem ouvidas. Acho que ainda subestimamos os perigos do imaginário dos complôs e onde isso pode levar.
Valor: O movimento QAnon, que propaga a teoria de que o ex-presidente Trump travaria uma guerra secreta contra elites de pedófilos adoradores de satanás, se espalhou por vários países, inclusive o Brasil...
Reichstadt: QAnon é de fato um bom exemplo do fenômeno de globalização das teorias da conspiração. Vimos, em 2020, referências a QAnon em protestos na Europa contra as medidas adotadas por causa da pandemia. Um movimento como QAnon não é algo que cai do céu. Isso surge porque há redes estruturadas, pessoas que exercem pressões e que têm interesse em interpretar o mundo dessa maneira. Alguns são bem conhecidos e ganham muito dinheiro com isso, como o [cineasta e escritor] americano Alex Jones. As teorias da conspiração não se resumem a aspectos políticos e ideológicos. Não se pode esquecer que há uma atividade econômica ligada aos complôs.
Valor: Como há pessoas que podem acreditar em alegações totalmente infundadas, entre elas a de que a Terra seria plana e que as vacinas contra a covid-19 teriam um nanochip com tecnologia 5G para monitorar a população, ou ainda que a pandemia foi criada para eliminar as liberdades individuais?
Reichstadt: Para muitos, aderir a uma teoria de complô é se dar uma imagem heroica de si mesmo. É um potente transtorno de personalidade narcisista, destinado a se distinguir dos outros, aqueles que são carneirinhos e que engolem tudo o que ouvem. Os conspiradores se veem como iniciados, os que conhecem o que está por trás do jogo. Há um outro fator psicológico que chamo de dissonância cognitiva: você tem uma certa visão do mundo no momento em que acontecem eventos que contradizem totalmente essa versão. Há duas soluções: ou corrige-se a visão do mundo ou nega-se o que aconteceu. Nesse caso, as teorias de complô fornecem um meio de fugir da realidade. Por exemplo, um muçulmano chocado com o assassinato de jornalistas que publicaram caricaturas de Maomé pode preferir achar que isso é uma conspiração contra o islã em vez de achar que os assassinos mataram em nome de religião. A educação é a melhor maneira de lutar contra essas teorias, mas isso leva tempo.
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