José Eduardo Agualusa
Fico pensando se nossa tragédia global, com uma série delirante de impossibilidades, poderá ou não contribuir para a reabilitação do realismo mágico
Dário encostou-se a uma rocha alta para se proteger da chuva que começava a cair. Conversava pelo celular com um amigo, quando se deu conta de que duas das cabras do seu rebanho avançavam aos tombos. “Estão duas cabras a tremelicar”, comentou o experiente pastor, de 52 anos, com o amigo. Então olhou para trás, e o que viu deixou-o mudo de espanto e de terror: “Estavam todas mortas!”, contou mais tarde a um jornalista.
Todas também não. Das 350 cabras do rebanho, 68 morreram de repente, sem nenhuma lesão exterior. Os veterinários consultados acreditam que as 68 cabras foram fulminadas no mesmo instante por um único raio. O governo recusa-se a indenizar Dário, argumentando não ter obrigação de controlar relâmpagos. Felizmente, criou-se uma rede de solidariedade, que está tentando ajudar o pobre pastor a reconstituir o rebanho.
Encontrei a história acima nas páginas de diversos jornais portugueses. Recortei-a e coloquei-a na pasta das “realidades imperdoáveis”. O episódio ocorreu no dia 2 de abril, em Arco de Valdevez, no norte de Portugal. É o tipo de história que um escritor sensato nunca colocaria num romance, temeroso de quebrar o pacto de verossimilhança com o leitor e, sobretudo, de irritar os críticos que odeiam o “realismo mágico” (todos odeiam). Até já ouço os críticos: “corte lá umas sessenta cabras, pelo amor de Deus!”
E, no entanto, foram 68! 68 cabras mortas por um único raio!
Fico pensando se a tragédia global que vivemos, com a imposição delirante de uma série de impossibilidades, poderá, ou não, contribuir para a reabilitação do realismo mágico. Quero dizer, numa época em que a realidade se amotina, o que irá fazer a literatura? Tentará ultrapassar a realidade, criando tramas cada vez mais implausíveis? Ou, pelo contrário, procurará recriar, para sossego espiritual dos leitores, um mundo ideal — embora irreal! —, no qual os aviões cruzem os céus serenos, transportando passageiros de um país para o outro; estranhos se beijem em grandes festas públicas; e multidões se misturem placidamente nas ruas e praças das grandes cidades?
Os anos que se seguiram à Segunda Grande Guerra viram surgir uma poderosa literatura realista sobre o conflito. O holocausto, cuja dimensão monstruosa se foi revelando aos poucos, não parecia credível. Todos nós, leitores, acabamos atravessando juntos esse horror intolerável. Hoje, não se tornou menos horrível, mas — graças, em parte, à literatura —, tornou-se, sim, mais verossímil, mais inegável. A ficção ajudou a credibilizar a realidade.
Da mesma forma, pode ser que um romance realista sobre este nosso tempo — o qual teria sido lido, em 2019, como uma má fantasia — nos ajude a assimilar esta loucura. Isso, e a insistência — a formidável teimosia da irrealidade.
O que era fantástico ontem, tende a parecer trivial amanhã. Basta pensar no telefone celular ou na internet. Então, é bem provável que aconteça algo semelhante e que o que agora nos parece extraordinário venha a ser aceito, daqui a poucos anos, como algo inevitável, prosaico e até um pouco enfadonho.
Suspeito, contudo, que a vida continuará a nos pregar partidas — bruscos instantes de espanto. Eventualmente, à custa de pobres cabras.
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