Não bastasse carecer de base científica, decisão de liberar cultos na pandemia não para em pé juridicamente
Direito é como um castelo de cartas, onde as peças (os argumentos) empilham-se delicadamente; sem isso, o castelo todo cai por terra. É o que acontece com a decisão do ministro Kassio Nunes, do STF (Supremo Tribunal Federal), pela liberação de celebrações religiosas presenciais na pandemia. Que fique claro: o ministro desafia a hermenêutica e a paciência jurídicas ao tentar, sem sucesso, empilhar de forma desconexa argumentos que, juntos, não convencem e, sozinhos, estão errados.
A primeira carta malposta é quem apresenta a ação. Nunes concedeu a medida cautelar pleiteada em uma ação diretamente proposta no Tribunal pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure), ação tecnicamente chamada de ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental). Qual o problema? Anajure não pode apresentar uma ADPF ao STF. Quem disse isso? O próprio STF, com aceite de Nunes, em outro caso de fevereiro de 2021.
Naquele caso (ADPF 703), o Tribunal, em voto do ministro Alexandre de Moraes, decidiu por unanimidade que a Anajure não cumpria com os requisitos para ingressar com uma ação direta no STF, na qualidade de “confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional”, como manda a Constituição e a lei. Nas palavras do STF, Anajure congrega “associados não vinculados a uma única e homogênea categoria profissional ou econômica”, logo ilegítima para propor a ação.
No caso decidido neste sábado (3), Nunes tenta dar uma cartada em si mesmo: o ministro do STF diz praticar “distinguishing” —um termo técnico, aqui mal empregado, para dizer que o precedente anterior do STF não se aplicaria por ser distinto do caso atual. Primeiro, isso não faz sentido porque o caso decidido neste domingo versa sobre exatamente o mesmo tema do caso rejeitado pelo STF há um mês, a saber: questionamento de medidas municipais que restringem aglomerações religiosas em razão do agravamento da pandemia.
Em segundo lugar, Nunes pratica dois pesos, duas medidas: mesmo se considerarmos que a recente jurisprudência do STF tem flexibilizado as regras para se apresentar um caso direto ao Tribunal, o mesmo ministro preferiu rejeitar, no último 23 de fevereiro, a possibilidade da confederação nacional de quilombolas (Conaq) de usar do mesmo instrumento legal da ADPF, na ocasião para proteger comunidades quilombolas contra a Covid-19.
Outra carta malposta no castelo de argumentos de Nunes é sua visão sobre como lidar com conflitos de direitos fundamentais —de um lado, a liberdade de culto e, de outro, a vida e a saúde. Aqui, a técnica jurídica de Nunes é sofrível. “Proibir pura e simplesmente o exercício de qualquer prática religiosa viola a razoabilidade e a proporcionalidade”, escreve o ministro. Razoabilidade (adequação entre os meios empregados pelos municípios, o isolamento social, e o fim almejado, a diminuição das mortes) é diferente, tecnicamente, da regra de proporcionalidade, essa mais ampla.
Kassio Nunes teria que explicar, ademais, por que liberar cultos no auge da pandemia seria a solução, entre outras igualmente eficazes para garantir a liberdade religiosa, que menos violaria a vida e a saúde de todos. Tampouco o ministro nos explica por que pedir para que se pratique, temporariamente, a religião em casa viola tanto a liberdade religiosa quanto as mortes sem ar na pandemia violam o direito à vida. Esses questionamentos fazem parte da proporcionalidade que o ministro se propõe a fazer e não faz.
Praticar a fé em casa respeita tanto a sua religião quanto a vida e saúde dos outros. Entre a cruz que diz proteger e a lei que deve servir, Nunes não respeita nem um nem outro. Seus argumentos, já dizia Jesus, “por fora parecem formosos, mas por dentro estão cheios de cadáveres.
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