Conrado Hübner Mendes
São Paulo está entre as cidades que mais radicalizam os muros da sociedade brasileira
O contraste entre Higienópolis e Paraisópolis é uma síntese das tensões urbanas dessa cidade que discrimina, segrega e mata. Prestes a completar 466 anos, São Paulo está entre as cidades que mais radicalizam as fraturas e muros da sociedade brasileira. Dois eventos de notável complementariedade marcaram o ano de 2019. Não podem ser esquecidos nesse aniversário.
O bairro que nasceu no início do século passado sob a promessa da higiene, de água encanada e esgoto, de proteção contra a malária, que ofereceu distanciamento social e sanitário do centro, tem nos últimos anos feito homenagens periódicas a essa filosofia de origem.
Seu shopping de luxo, Pátio Higienópolis, pediu autorização à Justiça para que seus seguranças pudessem apreender crianças em situação de rua no seu entorno e entregá-las à Polícia Militar. A juíza que rejeitou o pedido sugeriu ao shopping que adotasse programas de auxílio aos que “não se enquadram no desejável público de frequentadores”.
Apesar de seu advogado ter insistido que essas crianças causam “transtorno e insegurança aos frequentadores”, o shopping preferiu pedir “sinceras desculpas por gerar interpretação contrária à intenção de proteger os menores”. Depois dos casos de racismo praticados por seus funcionários contra crianças em 2017 e 2018, em 2019 o shopping tentou converter o teste de asseio e aparência em política oficial. Como se comportará em 2020?
O loteamento de Paraisópolis também nasceu, lá na década de 1920, com promessas de distinção, grandeza e requinte europeu. Os compradores logo descobriram, contudo, que as características da área, a enorme distância do centro e a ausência de pontes para cruzar o rio Pinheiros tornavam caro demais construir e urbanizar. O paraíso ficou na promessa.
A partir dos anos 1950, a área começou a ser ocupada informalmente por imigrantes pobres em busca de oportunidades de emprego (atraídos pela construção do Palácio dos Bandeirantes, do estádio do Morumbi e do hospital Albert Einstein).
Décadas depois, tornou-se a segunda maior favela da cidade, e uma favela singular: divide muros com um bairro de mansões. A justaposição de riqueza e pobreza, sem meio-termo, é tão extravagante que a foto aérea daquele edifício da avenida Giovanni Gronchi, com seus terraços flutuando sobre a favela, entrou na iconografia global da desigualdade. Não há reportagem sobre desigualdade no mundo que não exiba a foto daquelas piscinas suspensas.
Um mês atrás, intervenção policial num baile funk pisoteou e matou ali nove crianças e jovens negros (Bruno, Luara, Gustavo, Eduardo, Gabriel, Mateus, Marcos Paulo e dois Dennys). O governador, que prometeu polícia que atira para matar, sem tomar ciência da gravidade dos fatos, correu para defender a ação policial. Declarações sobre a culpa dos jovens foram ouvidas nas discussões públicas a respeito.
No caminho entre Higienópolis e Paraisópolis, presunção de inocência torna-se presunção de culpa. Invertem-se o ônus da prova, a comoção social e a atitude governamental. As investigações prometem ser rigorosas. É o jargão protocolar. Nada conclusivo até agora.
O Mapa da Desigualdade 2019, da Rede Nossa São Paulo, mostra que moradores de alguns distritos da periferia da cidade vivem, em média, 20 anos menos do que se vive nos bairros ricos da cidade.
Morar em Higienópolis dá 15 anos a mais de vida em comparação com Paraisópolis. Parte da explicação é a discrepância de homicídios de jovens entre 15 e 29 anos: em Paraisópolis, são 40 homicídios a cada 100 mil jovens, índice de guerra; em Higienópolis, 0.
Políticas públicas mais estruturadas chegaram nas periferias durante o último ciclo de crescimento econômico dos anos 2000, ainda que com alta discrepância na qualidade. Eduardo Marques, pesquisador da desigualdade, mostra que os “padrões de evitação e de segregação” da cidade de São Paulo, no entanto, só fizeram crescer.
No nosso modelo de desenvolvimento urbano, Higienópolis precisa de Paraisópolis, mas Paraisópolis precisa aprender qual o seu lugar. Se não entender, a polícia vem para ensinar.
Conrado Hübner Mendes
Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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