Governos locais e federal ignoram chuvas que voltam a cada ano, agora com intensidade crescenteMarcelo Leite
Os 54 mortos e 46 mil desalojados em Minas Gerais, até a manhã desta quarta-feira (29), são vítimas da pior chuva no estado em 110 anos para os quais há dados. Nunca se registrou tanta água em Belo Horizonte.
De quinta para sexta-feira (23/24) foram 172 mm, mais da metade da média para todo o mês de janeiro (330 mm). Na noite de terça (28), a capital mineira enfrentou novo temporal, quando se despejaram sobre sua região centro-sul 176 mm, a maior parte no intervalo de meras três horas.
Fenômenos de precipitação assim intensa se encaixam com perfeição no conceito de eventos climáticos extremos tais como previstos nas projeções dos efeitos do aquecimento global, ou efeito estufa agravado pelas emissões de carbono das atividades humanas. Há outros, como ondas de calor, secas e incêndios florestais a assolar a Austrália.
É uma questão de física. A energia de origem solar adicionada à atmosfera por um cobertor mais grosso de gases do efeito estufa que impedem seu retorno ao espaço, como o dióxido de carbono resultante da queima de combustíveis fósseis, intensifica a evaporação, a produção de nuvens poderosas e o choque entre massas de ar, produzindo tempestades ciclópicas.
Encaixar-se no conceito não prova causalidade. Mas há indicação abundante de que eventos extremos se tornam mais frequentes, como nas duas tormentas seguidas em BH. A incerteza que persiste na ligação entre uma coisa e outra não justifica deixar de agir sobre a informação segura que já existe sobre vulnerabilidade a tais cataclismos.
A capital mineira conta, há mais de uma década, com uma carta de áreas de inundação para orientar prioridades de seu Plano Diretor de Drenagem Urbana, datado de 1999. Como justificar que, em tanto tempo, não se tenham feito os piscinões e obras de desimpermeabilização do solo para represar ou dar passagem livre às águas?
Chuvas de verão flagelam todos os anos moradores empobrecidos das áreas de risco para enchentes e deslizamentos. A previsão de que temporais se agravem com a crise do clima só constituiria razão adicional para os governantes adaptarem as cidades e suas redes de drenagem para isso, mas a maioria prefere pôr a culpa em São Pedro a cada desastre.
Pior ainda quando o mau exemplo vem de Brasília, onde se instalou pelo voto popular um governo de negacionistas do aquecimento global. O Plano Nacional sobre Mudança do Clima adotado em 2007 (governo Lula) dorme em alguma gaveta do Planalto, se é que não foi parar na lata do lixo.
Coincidência ou não, o gasto do governo federal com prevenção de desastres em 2019, sob o presidente Jair Bolsonaro, foi o menor em 11 anos, como noticiou a Folha quarta-feira (29). Uma dotação que já foi de R$ 4,2 bilhões em 2012 (governo Dilma) caiu para R$ 306 milhões (recuo de 93%), e desse valor empenhado menos de R$ 100 milhões foram efetivamente liquidados.
O país ainda vai pagar muitas vezes —e bem caro, em vidas e tormento de gente pobre— por tanta imprevidência. De pouco vale as instituições funcionarem e a economia reagir, como dizem, se o Estado não consegue prover o mais básico para a população.
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