quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Modelo urbano brasileiro é desastroso, não as chuvas


Históricos são os erros da nossa urbanização e não as chuvas deste janeiro de 2020

Raquel Faria

O volume inédito de água caindo do céu só exacerbou o problema, não o criou. Enchentes e alagamentos ocorrem há décadas no início do ano em Belo Horizonte e vários outras cidades, mineiras e brasileiras. Os danos e as vítimas variam a cada ano conforme o índice pluviométrico, mas nunca deixaram de existir; são previsíveis, fatídicos. Por que? Qual cidade do porte de BH em outra parte do mundo que alaga todo período chuvoso? É óbvio que o problema resulta da ação humana. Históricos são os erros da nossa urbanização e não as chuvas deste janeiro de 2020.

O modelo urbano que adotamos é anti-ambiental; nossas cidades agridem a natureza. Brasileiro cimenta terreiro para não ter o trabalho de limpá-lo; prefere asfalto à pedra para rodar melhor de carro; constrói até prédios à margem de cursos de água; joga lixo nas vias pública sem a menor vergonha; tem verdadeira adoração por concreto, que vê como solução para tudo, inclusive para canalizar rios e ‘dominar’ a natureza. Via de regra a cidade brasileira é pouco permeável à infiltração da chuva no solo, acumula lixo nas saídas de água e tem edificações em áreas de risco. Nossas cidades são feitas para alagar.

Por que insistimos num modelo de urbanização que causa tragédias ano após ano? Por que é tão difícil romper, mudar o padrão de urbanização?

O brasileiro comum não percebe mas o nosso modelo urbano se destaca pelo nível absurdo de verticalização e adensamento. No Brasil, até cidades pequenas se enchem de prédios; as aglomerações de torres pipocam por todas as regiões de todos os estados, inclusive em plena Amazônia. Difícil apontar um país no mundo que tenha tantas cidades com ‘selvas de pedra’ no centro. E haja concreto, cimento.

Essa paixão brasileira pela verticalização é fruto da profunda divisão social no país e da insegurança crônica que ela gera. As pessoas buscam torres de apartamentos para isolamento social e proteção contra violência urbana. Mas, independente das razões, o modelo de urbanização que se desenvolveu aqui tem raízes no preconceito e no medo que há séculos formam um fosso entre os mais ricos e os mais pobres. Por isso é tão difícil mudar.

E rasguem-se os véus da hipocrisia. Enchente é tragédia típica de pobre; raramente afeta famílias com dinheiro para se precaver delas. E como pobre não tem prioridade no poder público, o problema se eterniza. A classe média que determina as políticas do Estado não se dispõe a romper o modelo urbano da exclusão social para evitar a tragédia anual de pobres.

A comoção e indignação diante das imagens chocantes dos estragos das águas são de praxe na mídia e redes sociais, tão recorrentes como as próprias enchentes. Vão embora junto com as chuvas. No carnaval, se o tempo ajudar, tudo já estará esquecido. E todos continuarão concretando e cimentando, espalhando lixo e entulho, até as próximas chuvas e enchentes. É um círculo vicioso. Hoje, infelizmente, sem um fim à vista.

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