Bruna Barros/Folhapress
“Os Miseráveis” tematiza o nascimento da revolta. Não quer ensinar como os poderes constituídos devem reagir a ela.Mario Sergio Conti
É em Montfermeil que o injustiçado Jean Valjean encontra a doce e indefesa Cosette em “Os Miseráveis”, de Victor Hugo. Ali, a 25 quilômetros da Torre Eiffel, e a uma hora de trem, se passa outro “Os Miseráveis”, o que concorre ao Oscar de melhor filme internacional.
Em Montfermeil fica Les Bosquets, um conjunto habitacional de concreto construído nos anos 1950 para abrigar operários, tendo sido um bastião do Partido Comunista.
Foram também para lá imigrantes de ex-colônias francesas na África. Aos poucos, a República abandonou o lugar.
O lugar é uma “banlieue”, palavra cuja etimologia remete a “ban” (local onde a lei é imposta à força) e “lieue” (légua, lugar). “Ban” não augura nada de bom: figura em banir, abandonar, bandido. Banlieue é o lugar longe para onde bandidos são banidos e abandonados.
“Os Miseráveis” começa no final da Copa do Mundo. A multidão canta “A Marselhesa”, agita a bandeira tricolor, ocupa a Champs-Elysées, festeja a vitória com o Arco do Triunfo ao fundo. Vive la France! No meio da grande festa nacional está uma galera que veio de Les Bosquets.
Os adolescentes são franceses que cometem pequenos delitos em Montfermeil e comemoram em Paris o gol de Mbappé. Mas a República não os considera cidadãos. São meninos de rua, mestiços pobres que, como em “A Marselhesa”, inundam com sangue impuro a terra de Victor Hugo.
A República se faz presente em Montfermeil por meio de três policiais. O chefe da patrulha, Chris, é um branco que arrebenta o celular de uma menina que quer filmar uma blitz. Gwada, negro e filho de imigrantes, é cria de Les Bosquets. Stéphane, branco, é novo no pedaço.
A ronda dos três tiras apresenta a periferia e seus personagens. Há traficantes de droga. Criminosos convertidos em sacerdotes muçulmanos. Ciganos donos de circo.
Contrabandistas de feira. Mães de famílias despedaçadas. Meninos maltrapilhos soltos na rua. Chefetes corruptos.
“Os Miseráveis” tem algo dos filmes e seriados com policiais estereotipados: a dupla com o tira bom e o mau; a equipe de classe média que confronta a pobreza urbana; o bom moço que enfrenta meganhas facinorosos. Cabem no gênero desde “Dois Tiras da Pesada” até “The Wire”.
Mas “Os Miseráveis” pertence a outra família —aquela na qual as questões sociais suplantam as peripécias individuais. Embora a psicologia seja abandonada, a sociologia não providencia ensinamentos condescendentes. A tensão predomina sem ser espetaculosa.
Na França, os exemplos ilustres são “O Ódio” e “Entre os Muros da Escola”, ambos premiados em Cannes. No Brasil, “Cidade de Deus”. São filmes que falam de dentro da situação que dramatizam.
Ladj Ly, o diretor de “Os Miseráveis”, por exemplo, poderia ser personagem do filme. Filho de um casal vindo do Mali, ele cresceu e vive em Les Bosquets, onde aprendeu a filmar por conta própria. Criou um coletivo de agitprop para registrar ações policiais no bairro.
Foi condenado por agressão verbal devido a comentários “ultrajantes” que fez sobre a polícia num filmete do coletivo. Recebeu uma segunda condenação por “violência” contra o prefeito de Montfermeil. Passou um ano na prisão por “cumplicidade em sequestro”.
A periferia que ele mostra tem o impacto do novo. Cores, corpos, fala, roupas e rompantes não são os do Quartier Latin. Nem dos seriados da TV que se metem a contar o que se passa nos guetos. O realismo cru não tem nada de apelativo. Talvez esteja perto da vida como ela é.
“Os Miseráveis” condensa e desloca um fato acontecido ali ao lado de Montfermeil, em Clichy-sous-Bois, em 2005. Dois meninos, Zyed Benna e Bouna Traor, foram perseguidos e encurralados numa casa de força ao tentarem escapar de uma blitz. Morreram eletrocutados.
Houve protestos e a polícia atirou uma granada numa mesquita de Clichy. As manifestações chegaram a Montfermeil e dali se espalharam pelo país. O governo decretou estado de emergência e deteve 3.000 pessoas. Foi o maior motim na República desde Maio de 1968.
De lá para cá, a pequena e a grande história andaram. Os policiais responsáveis pela morte dos garotos foram inocentados. Aumentou o movimento mundial que força a migração de milhões de pessoas, e depois as desemprega e as bane para Montfermeil, Paraisópolis, Cidade de Deus.
“Os Miseráveis” tematiza o nascimento da revolta. Não quer ensinar como os poderes constituídos devem reagir a ela. O filme é pré-político: mostra que a luta contra a injustiça vive; a República, nem tanto.
Mario Sergio Conti
Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".
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