O cinismo das religiões, que atravessa décadas e séculos, em nada se compara à sombra que pesa hoje sobre os carnavaisMarilene Felinto
Uma das maldições daquela infância era ser de família protestante e não poder brincar no Carnaval. De modo que alimentamos, durante certo tempo, o desejo também equivocado de sermos católicos e, portanto, ao que tudo indicava, de sermos alegres.
Nem Carnaval nem São João. Crianças protestantes não pulavam fogueira de São João nem dançavam no pastoril de Natal. No Carnaval, assistiam de longe, de cima do muro, esticando o pescoço, ao corso que passava na avenida além.
E ainda que, no maldito Carnaval, o frevo-de-bloco que mencionava nosso sobrenome tocasse ao longe, animando o corso (“Felinto, Pedro Salgado, Guilherme, Fenelon, cadê seus blocos famosos?”, da “Evocação”, de Nelson Ferreira, de 1957), não podíamos ir ver, assistir à farra dos foliões.
A rua se dividia claramente entre católicos e protestantes naquele pobre Recife dos anos 1960. Experimentar tristeza ou alegria nas festas do ano tinha relação direta com a religião. Para o lado católico da rua, tudo o que parecia alegria: festejos coloridos, desfiles musicais e dançantes, fantasias, máscaras, confetes e serpentinas —e o frevo, o frevo-canção, o frevo-de-bloco.
Para o lado protestante, (também chamado, então, de “crente” e, hoje, “evangélico”), pesada tristeza, proibição, recolhimento (pela salvação), estoicismo, a Bíblia e sua capa sisuda, de couro preto. Do lado católico da rua, cerimônias cheias de velas e hábitos de padres e freiras, imagens coloridas de santos e santinhos, cruzes, terços, hóstias — toda uma parafernália litúrgica.
Do lado protestante, a imagem do céu azul com nuvens brancas e macias pintada na parede do fundo da igreja. Logo abaixo, a água azulada do lago de batismo — era construção sem enfeites, sem adornos, apenas uma flor aqui e ali. Precisava-se da austeridade na expiação da alma. Devia-se seguir o exemplo de Jó, a perseverança na dor, no flagelo.
Do lado católico da rua, o inacreditável conceito de “purgatório”, que dava um invejável alívio ao pecado, uma segunda chance, uma leveza à religião católica. Do lado protestante, escola dominical, leitura e análise cotidiana do “livro sagrado”, leitura e recitação de salmos decorados em capítulos e versículos.
Do lado católico da rua, a gente melhor de vida, que tinha dinheiro, carro, comida, mulheres maquiadas com batom e rouge —e que era vista como profana, dependente de imagens de santos, de interferência de padres e papas para alimento da suposta fé no Deus.
Do lado protestante, pobreza, escassez, alguma fome, roupas compridas, cabelos longos para as mulheres, ternos surrados para os homens — e eram considerados estranhos os reformadores a caminho do reino dos céus, por demais repressores e algo dissimulados na pedagogia do comportamento que pregavam.
Nós, crianças de família protestante, fomos, no fim das contas, desenvolvendo um antídoto para a tristeza: a raiva das duas religiões. Afinal, quem podia acreditar na mentira do purgatório? Não existia, nunca tinha existido! E ainda que o Carnaval e as outras festas profanas, de santos, fossem atraentes, quem podia acreditar na mentira do confessionário católico? Ninguém. Como também era mentira o sangue do Cristo protestante, que nunca tinha escorrido de fato pelas mãos do pastor que pregava no culto.
De noite, naquele culto dos “crentes”, das igrejas Batista ou Assembleia de Deus, cabeceávamos de sono ao lado de pais e mães, sentados nos bancos duros da igreja. A única hora bonita ali era ver e ouvir a mãe cantar do hinário, voz firme e afinada: “Chuvas de graças! Chuvas pedimos, Senhor! Dá-nos chuvas constantes! Chuvas do Consolador!”. O resto todo da liturgia era odioso, a gritaria dos fiéis evocando o sangue de Jesus Cristo num alarido sem fim, o calor assolando o interior do salão rústico. No culto protestante, “música” recebia o nome de “hino”.
De dia, na escola de freiras católicas onde éramos bolsistas, desrespeitávamos sorrateiramente a missa. Como éramos proibidas de participar por sermos “crentes”, ficávamos fechadas em uma das salas de aula enquanto durasse a reza. Mas, em dias de comunhão, combinávamos com as colegas católicas que roubassem um tanto das tais hóstias consagradas para que também as protestantes pudessem comê-las na hora do recreio —as bolachinhas gostosas, que grudavam no céu da boca—, e todas riam muito alto da façanha, nos esconderijos do pátio de recreio.
Experimentar tristeza ou alegria, em certas épocas do ano tinha a ver com a religião, portanto. Décadas depois, já no exílio de hoje, longe daquelas ruas e avenidas de corsos, o sobrenome nosso ecoa na lembrança do frevo antigo. Mas quão triste um frevo pode ser?
Na voz dos Batutas de São José, a “Evocação” tinha notas de beleza e de lamento ao mesmo tempo. O frevo contava que Recife adormecia, ficava a sonhar, “ao som da triste melodia” dos carnavais antigos. E continuava, em tom de despedida: “Adeus, adeus, minha gente”.
Mas a dura repressão daquela época, o cinismo das religiões que segue atravessando décadas e séculos, em nada se compara à sombra que pesa hoje sobre os destinos dos carnavais (e dos governos do país): a vigilância policialesca sobre os corpos, as sexualidades, o sexo, o pensamento... nada disso se compara à proibição de assistir, como crianças alegres, ao corso de Carnaval. Ali nos rebelamos com raiva das religiões, burlamos ambas.
Hoje, o autoritarismo retrógrado dos evangélicos dá o tom, eles que infestaram as instâncias da política e dos governos, eles que cresceram em número como coelhos nas últimas décadas no Brasil: segundo o IBGE, no ano 2000, representavam 15,4% da população brasileira; já em 2010, chegaram a 22,2% dos brasileiros (de 26,2 milhões para 42,3 milhões). Socorro!
Enquanto isso, os católicos passaram de 73,6% em 2000 para 64,6% em 2010. E continuam em pleno declínio. Novas projeções estimam que, já em 2022, os católicos ocuparão menos de 50% das opções religiosas nacionais, pela primeira vez em 200 anos; e serão ultrapassados pelos evangélicos até 2023.
O Carnaval resiste. Mas o frevo-de-bloco ecoa ainda mais triste, a marchinha, a “marcha-regresso”. Adeus, adeus, minha gente. Cadê a alegria?
Marilene Felinto
Escritora e tradutora, escreve na Folha duas vezes por mês.
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