Bolsonaro montou a trincheira. E acaba de lançar uma granada contra o Congresso
Matheus Pichonelli
Jair Bolsonaro foi eleito presidente com quase 60 milhões de votos e muitas promessas a não serem cumpridas.
Quem observa seus passos para além do fanatismo já percebeu que não passava de um boneco inflável o mito do herói patriota que surgiu dos céus para estabelecer a ordem e a justiça em uma Gotham City tomada por larápios e aproveitadores.
A agulha do boneco veio do próprio palheiro onde essa conversa começou. Sua eleição não fez o dólar cair por força gravitacional; a empolgação do empresariado já se contenta com o Pibinho; o patriotismo vendido na eleição era uma continência para a bandeira americana e réplicas da Estátua da Liberdade em lojas de departamento; a mamata virou assunto de família e dos amigos da família; a competência de parte da equipe virou um festival de tagarelices e ataques à língua portuguesa; órgãos de investigação e controle passaram a ser alvo de todo tipo de investida; as relações com amigos suspeitos instalados no gabinete dos filhos ficaram escancaradas; o pouco caso com o meio ambiente gerou reprimendas mundo afora; e, no coração do governo implacável contra bandidos e corruptores, precisou um governo estrangeiro, o da Espanha, perceber que havia 39kg de cocaína em um avião oficial que acompanharia a comitiva do presidente eleito para mudar tudo isso que está aí.
Ainda assim, o núcleo duro de seus apoiadores segue convicto de que o Brasil só não virou uma potência econômica e moral porque forças ocultas e nem tão ocultas impedem seu mito de detonar a bomba da disrupção.
Um de seus filhos já alimentou a lenda dizendo que pelas vias democráticas a transformação que o Brasil quer não acontecerá na velocidade que almejamos. Outro sugeriu um novo AI-5 para lidar com eventuais descontentamentos populares. Foi seguido pelo ministro da Economia que não gosta de ver empregada doméstica em aeroporto.
O pai presidente, toda vez que confrontado com a realidade, investe nessa mesma narrativa, ora em forma de leão atacado por hienas, ora repassando correntes dizendo que o Brasil é “ingovernável” fora dos “conchavos políticos”.
Tem quem acredite que o bolsonarismo seja apenas uma ilha de boa-fé cercada de corrupção por todos os lados, e que esta ilha está sendo sufocada pelo boicote dos inimigos.
O alvo da artilharia, que já mirou representantes do Supremo Tribunal Federal, agora é o Congresso. Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre dão nome e sobrenome à ameaça.
É contra eles que grupos de extrema-direita, fiéis à tese de que Bolsonaro precisa se livrar das correntes para nos salvar, vão às ruas no próximo dia 15, como se atendessem a uma convocação do general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, que recentemente pediu um “basta” a uma suposta chantagem patrocinada do chamado “parlamentarismo branco” contra o governo.
Ninguém dizia isso quando, diante da inação do governo, Maia e Alcolumbre arregaçaram as mangas para aprovar a reforma da Previdência -- vendida como a receita mágica do crescimento nacional.
Faz sentido que Heleno veja chantagem agora na negociação com representantes do Parlamento eleitos pelas mesmas urnas que sufragaram seu presidente. Na política, ele acaba de descobrir que, em uma República Federativa, deputados e senadores não são subordinados que se alinham em continência quando um superior dá as ordens.
A questão é que Bolsonaro se cercou de militares como Heleno antes de declarar a guerra em duas frentes. Primeiro, quando jogou a revolta de motoristas e caminhoneiros no colo de governadores resistentes a abrir mão de recolher impostos dos combustíveis; depois, quando compartilhou, na terça-feira de Carnaval, a convocação do ato contra o Congresso.
O ato mostrou que o governo não acompanhava a movimentação em silêncio, como se supunha. A granada foi lançada enquanto o presidente reforçava as trincheiras e observava, aparentemente de longe, a força dos motins protagonizados por policiais em estados governados por adversários (hoje, quase todos). Enquanto era malhado nas fantasias, escolas de samba e blocos de carnaval, ele circulava pelas ruas do Guarujá oferecendo selfies em troca da imagem de um presidente afável e amado pelos súditos -- em oposição aos engravatados de gabinete.
Antes do ataque, Bolsonaro recrutou pesos-pesados da Marinha e do Exército para seu barco. Sendo assim, passou a ser deles também a briga pelo controle do Orçamento. Sem base no Congresso, espatifada após a implosão do PSL que o elegeu, Bolsonaro viu deputados e senadores aprovarem uma medida que lhes permite gerir R$ 30 bilhões de um total de R$ 80 bilhões do Orçamento -- uma forma, diga-se, de transformar em “cá” o que o próprio presidente chama de toma-lá-dá-cá.
Isso equivale a dizer que os ministros de Bolsonaro terão de trabalhar mais com menos. (Em tempo: segundo a coluna Painel, da “Folha de S.Paulo”, o Ministério da Educação tem entre suas prioridades para 2020 ampliar, mobiliar, reestruturar e ampliar o número de vagas para as instituições militares de ensino superior. Para isso, precisará de emendas dos parlamentares.
Como negociar neste clima? Com um cabo e um soldado?)
Desde os primeiros atos pelo impeachment era possível ver, em meio a faixas e bandeiras contra a corrupção, manifestações de desejos de servidão voluntária com pedidos de intervenção militar e fechamento das instituições democráticas, entre eles grupos de mídia hoje hostilizados pelas hordas bolsonaristas. Eram observados apenas como efeito colateral de um movimento mais amplo -- e nobre.
Hoje esses movimentos estão no centro do teste que pode dar a sensação de aval para o presidente descarregar o resto das granadas até conseguir fazer o que bem quiser sem pedir aval para ninguém.
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