quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Três falas (um textinho inacabado)


Sírio Possenti

Eu li nos idos tempos uma “definição” de ideologia de que sempre gostei: “tratar como natural algo que é histórico”. Mas não me peçam a fonte – ou as fontes. Hoje esta tese se tornou corrente, com a palavra “naturalização”, bastante recente em mais de um campo, pelo que leio.

Certos enunciados mostram isso muito bem. Por exemplo: Blairo Maggi disse, numa fase de sua vida em que foi ministro da Agricultura, a propósito de demarcação de terras: “Não vou acomodar um índio para desacomodar uma família”. Observem que diz “índio” por oposição a “família”, e não a outro povo ou a um profissional – como agricultor. O que isso sugere? Que índio não é gente, uma tese bem antiga, de quando se discutia se certos povos tinham alma. “Família” se emprega para humanos. Seu emprego em botânica ou zoologia tem outra dimensão.

Outro exemplo, recente, do atual presidente: “Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”. Isto é, ele não é igual a nós, e até já foi ainda mais diferente (é a mesma tese de Blairo, com algumas nuances) Para ele, ser igual a “nós” tem a ver com produzir à nossa maneira, por um lado, mas claramente, por outro, evoca “selvagem”, que não á toa é também sinônimo de “desumano”.

Mais: Guedes disse que “todo mundo” estava indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada. Assim, colocou as domésticas num patamar mais baixo que o de outras pessoas/profissões, indício de que as considera mesmo “diferenciadas”. A maior prova de que a “sociedade” não as considera iguais é que só recentemente elas passaram a ter alguns direitos trabalhistas – agora diminuídos para todos, aliás.

Essa declaração lembra famosa fala de Boris Casoy, vazada num intervalo do jornal que então apresentava, que acabara de mostrar dois garis desejando felicidades num final de ano: “Que merda! Dois lixeiros desejando felicidades... Do alto de suas vassouras... Dois garis... o mais baixo na escala do trabalho”.

Onde está mesmo a ideologia? Está em considerar óbvio que as coisas são assim por natureza.
Um problema: esta teoria pode inocentar o enunciador deste discurso? Juridicamente, sabemos que não (Boris teve que pagar uma indenização). Mas moralmente? Talvez não, segundo algumas teorias, porque “ele não sabe o que está falando”, “não é dele que vem esse discurso”, “ele esquece que vem de uma formação discursiva”.

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