José Eduardo Agualusa
Peguei um resfriado nas noites frias de Marrakech, onde estive durante uma semana, participando num festival literário. Viajando de avião entre Marrocos e Portugal, não consegui conter um ou outro espirro. Ao terceiro, a passageira sentada ao meu lado levantou-se e procurou outro lugar. Logo um outro imitou o gesto da primeira. Viajei com mais espaço e conforto.
Passei a viagem lendo uma coletânea de antigos textos jornalísticos de Gabriel García Márquez, “Obra periodística 3. De Europa y América (1955-1960)”. Corria o ano de 1957. O escritor e jornalista colombiano recorda o início de uma das maiores tragédias daquele tempo: 4 de maio, Cingapura. Um obscuro professor inglês, da Malaysian University, observa uma série de amostras de microorganismos que nessa manhã haviam chegado de Hong Kong. Assustado, envia nesse mesmo dia a amostra para Londres, com um alerta para as autoridades competentes. Tarde demais. No momento em que o avião aterrou em Londres, já vários marinheiros de um barco saído de Cingapura, dias antes, haviam começado a queixar-se de fortes dores no corpo. Um morreu. Os outros contaminaram médicos, enfermeiras e pacientes do hospital onde foram internados. “Quatro meses depois”, escreve García Márquez, na mesma noite em que estreou em Londres o último filme de Charlie Chaplin, “Um rei em Nova York”, a gripe asiática havia acabado de dar a volta ao mundo.” Matou dois milhões de pessoas. Anos antes, entre 1918 e 1919, a gripe espanhola levou cem milhões.
A epidemia do coronavírus, que entretanto conseguiu sair da China e se expande agora por um sem número de países, não parece ter o vigor assassino dos dois casos que citei. Tem potencial, contudo, para abalar a economia dos territórios mais atingidos, até o momento a China e a Itália. Além disso, ameaça corromper o bom senso e as regras básicas de convivência em sociedade.
O perigo maior não é o vírus, mas o pânico. Como tantos outros eventos dramáticos, a epidemia em curso tende a expor o pior da natureza humana: a xenofobia, o egoísmo, a curiosidade mórbida, o mercantilismo, a tendência para o alarmismo.
Turistas e imigrantes chineses sofreram ostracismo e ameaças em vários países do mundo. Restaurantes chineses perderam clientes. Agora chegou a vez dos restaurantes italianos. À medida que o vírus for colonizando o planeta, a xenofobia deixará de fazer sentido. Passaremos a ter medo não de um tipo de rosto em particular, mas de todos. Na última fase, depois que o vírus se espalhar, iremos habituar-nos a conviver com ele, como nos habituamos a conviver com a gripe comum, ainda que esta mate 700 mil pessoas todos os anos.
Nos dias que correm, as notícias falsas propagam-se mais depressa do que os vírus. Com medo da pandemia, há quem se deixe infetar por todo o tipo de preconceitos. Infelizmente, é muito mais difícil combater estes do que qualquer vírus. Por exemplo, enquanto a maioria se aflige e chora, uns poucos fabricam lenços — no caso, máscaras. Esses estão a fazer muito dinheiro, ainda que as máscaras, segundo asseguram os médicos, pouco protejam.
Ou seja: o pior inimigo da humanidade continua a ser o próprio homem.
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