Cidade de São Paulo chega a 10 mil mortes por covid-19; conheça perfil das vítimas
A cidade de São Paulo ultrapassou a marca das 10 mil mortes por covid-19 nesta quarta-feira, dia 5, segundo o boletim diário divulgado pela Prefeitura da capital paulista, com dados da Secretaria Municipal da Saúde. Isso representa 41,7% do total de óbitos no Estado e é maior do que o total de mortos no Chile, Argentina, Alemanha e África do Sul, por exemplo. São 10.055 pessoas vítimas da doença que deixaram seus familiares angustiados pela ausência da despedida como ela deveria ser, que pudesse fazer o luto ser vivido e, de alguma forma — se é que é possível —, amenizar a dor da partida. Um consolo necessário que foi arrancado de parentes e amigos.
O primeiro óbito causado pelo novo coronavírus no Brasil foi confirmado pela Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo em 17 de março. Era um homem de 62 anos que morava na capital paulista e havia morrido no dia anterior. Fazia menos de um mês que a pandemia tinha chegado ao País. Uma semana depois, dia 24, a quarentena seria iniciada por decreto do governador João Doria.
Porém, um levantamento feito pelo Estadão no TabNet, ferramenta disponibilizada pela Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo que permite acesso a dados de população e dos sistemas de informações do SUS, mostra que a primeira morte pelo novo coronavírus na capital paulista ocorreu em 12 de março. Como no começo da pandemia os resultados de testes para identificar o vírus demoravam muito tempo para sair, esse óbito só foi computado meses depois. O Ministério da Saúde só retificou a informação em 27 de junho.
A Prefeitura utiliza o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e o Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade no Município de São Paulo (PRO-AIM), que processa declarações de óbitos, para lançar as informações na base de dados da doença. Assim, segundo o órgão municipal, os números são mais precisos.
Os números, extraídos do TabNet, foram atualizados pela última vez em 30 de julho, com dados até o dia anterior. Segundo a Secretaria Municipal da Saúde, o banco de dados é revisto semanalmente, geralmente entre quinta-feira e sexta-feira.
Mortes por covid-19 na cidade de São Paulo por data de ocorrência
Havia ainda muita desconfiança da doença. Dois dias após o início do isolamento, com o funcionamento apenas de serviços essenciais, o município de São Paulo já registrava 50 mortes notificadas pela covid-19, de acordo com o boletim diário da Prefeitura. Foram necessários quatro dias para esse número dobrar. Quase um mês depois, a cidade ultrapassou os 1.000 mortos, chegando a 1.124. No dia em que mais de 2 mil pessoas já haviam morrido pela doença, em 7 de maio, passou a valer a obrigatoriedade do uso de máscara em todos os locais públicos do Estado. A contagem dos mortos começava a mudar o cenário da cidade.
Até o último dia daquele mês, já eram 4.212 vidas perdidas. São Paulo passou das 5 mil no décimo dia de junho. Portanto, a cidade completa 10 mil mortos por covid-19 141 dias após o anúncio da primeira vítima. Durante todo esse período, diversas medidas foram adotadas para que as pessoas ficassem em casa e, assim, tentassem conter a propagação do novo coronavírus. Além da quarentena e das máscaras, houve alteração do rodízio de veículos e bloqueio em trechos de algumas vias, mas com pouco efeito.
Com taxas de isolamento abaixo dos 70% esperados, o crescente aumento de infecções somado ao desconhecimento de um vírus novo resultaram nas milhares de mortes contabilizadas até agora. Nas últimas semanas, tem se observado uma estabilização de casos, óbitos e redução de internação. Porém, isso não nos faz esquecer das pessoas de todas as regiões da cidade, de todas as idades, gêneros, raças e preferências que se foram. Pessoas que gostavam de reunir a família, ouvir MPB ou discutir os assuntos de política da cidade que viam na televisão e nos jornais. Eram pessoas mais simples e com uma vida pela frente. Vidas interrompidas.
Quem são os mortos por coronavírus em São Paulo
O Estadão fez um levantamento na base de dados da Prefeitura, atualizada pela última vez em 30 de julho, sobre o perfil das pessoas que morreram por causa da covid-19 na cidade de São Paulo. A análise foi realizada com 9.752 registros de mortes confirmadas por declarações de óbitos, número contabilizado até 29 de julho, dias antes de atingir a marca dos 10 mil mortos. Por isso, ele se difere do total divulgado pela gestão. A análise possibilitou ver que 55,8% dos óbitos são de pessoas com 70 anos ou mais. Quase 19% estavam na faixa de 40 a 59 anos e 21,4% tinham entre 60 e 69 anos. Crianças com menos de 1 ano até adultos com 24 anos são os menos afetados e representam 0,5% do total.
Mortes por covid-19 na cidade de São Paulo por faixa etária
O perfil é semelhante à conjuntura nacional e o mesmo vale para quando analisamos o recorte por gênero. A maioria das pessoas que morreram por infecção do novo coronavírus é de homens (5.525, ou 56,7%) enquanto 43,3% (4.225) são mulheres. Dois registros de morte não têm o gênero identificado na base de dados da Prefeitura. Na relação por idade, também morrem mais homens do que mulheres. A única exceção é na faixa com 85 anos ou mais: foram 749 pessoas do sexo masculino ante 1.002 do sexo feminino.
Mortes por covid-19 na cidade de São Paulo por gênero
Os números indicam a prevalência de mortes por covid-19 entre brancos, mas com risco relativo maior para negros (soma de pretos e pardos). Do mesmo modo, embora a doença tenha atingido primeiro os bairros centrais e mais nobres da cidade, a epidemia se espalhou para as periferias, onde hoje se concentram os números mais altos de óbitos.
Até 30 de julho, as vítimas do novo coronavírus classificadas por raça/cor estavam distribuídas da seguinte maneira: 5.938 brancas, 913 pretas, 220 amarelas, 2.326 pardas, 7 indígenas e outros 348 registros estavam sem essa informação. Juntos, pretos e pardos somam 3.239 pessoas, ou 33,2% do total de óbitos.
Apesar disso, de acordo com o último boletim epidemiológico da Prefeitura de São Paulo, divulgado em 30 de abril, o risco de morte de negros é 62% maior em relação aos brancos e 23% a mais no caso dos pardos. O Estadão enviou à gestão municipal um pedido de atualização desses dados, mas não obteve retorno até a publicação desta reportagem.
Mortes por covid-19 na cidade de São Paulo por raça/cor
Quando se analisam as mortes por raça/cor e gênero, também morrem mais homens do que mulheres, mas a diferença é notadamente menor entre pessoas pretas e amarelas.
Mortes por covid-19 na cidade de São Paulo por gênero e raça/cor
No recorte por idade e raça/cor, ganha destaque a faixa etária de 40 a 44 anos, em que a soma das mortes de pretos e pardos é um pouco maior do que o total de brancos: 128 ante 112, respectivamente.
Mortes por covid-19 na cidade de São Paulo por faixa etária e raça/cor
Pela análise geográfica, é possível entender essas relações. Os 25 primeiros distritos com mais mortes pelo novo coronavírus estão nas zonas afastadas do centro da cidade e, juntos, somam 4.109 óbitos (42,1% do total). Em primeiro lugar está Sapopemba, seguido por Jardim Ângela, Brasilândia e Capão Redondo. É nessas regiões que se encontra a população mais vulnerável em termos sociais, educacionais, econômicos e de saúde. São lugares onde muitas pessoas tiveram de continuar trabalhando durante a quarentena, se expondo ao risco de contágio, e que não puderam fazer um isolamento social adequado em caso de infecção.
“Esses dados ratificam o que a gente já vem percebendo com vários indicadores que se referem à saúde da população negra. Nesse contexto de pandemia, eles reforçam que o acometimento é diferencial e sobre ela (população negra) recai essa questão do maior risco relativo, com chance maior de morrer por adoecer e por não ter um acesso que minimamente corresponde com direito à vida e saúde. Esse indicadores mostram barreira de acesso à vida”, avalia a professora Márcia Alves dos Santos, pesquisadora na UFRJ e integrante do Grupo de Trabalho Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). Para ela, em vez de se falar em grupo social invisibilizado, é mais adequado adotar o termo negligenciado.
Alguns motivos explicam esse risco maior, segundo Denize Ornelas, diretora de Exercício Profissional da Associação Paulista da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade (SBMFC). “Desde a população negra ter piores indicadores de saúde, como obesidade e hipertensão, assim como tem outras situações relacionadas à estrutura da sociedade. Eu, se sou pessoa branca, garanto que consigo ficar recebendo (salário) nos 14 dias que fico afastada do trabalho. Se sou pessoa negra que trabalha no mercado informal, não vou buscar atendimento de saúde logo no início. Quando vou agravar no quinto dia, vou em condição pior”, diz.
Fatores de risco
Ter saúde não é apenas ausência de doenças e envolve um rol de garantias de direitos, como educação, trabalho e lazer. Mas sem esses recursos que permitem uma vida melhor, somado a preocupações financeiras e ansiedade, o emocional também é abalado e o corpo pode responder com a manifestação de enfermidades. Há outros aspectos, indicados pela pesquisadora Márcia, da UFRJ.
“Houve uma pesquisa do Vigitel 2018 em que a população negra demonstrava maiores prevalências de doenças cardíacas, hipertensão, diabete e tabagismo. Como muitas dessas doenças dependem do comportamento, é óbvio que o acesso aos alimentos, a segurança alimentar, tem componente importante quando reflete sobre covid-19. E obesidade também tem sido apontada como agravamento importante para morte”, explica.
O levantamento da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo divulgado em 30 de abril mostra que as principais comorbidades, ou seja, doenças preexistentes nas pessoas que morreram por covid-19 na cidade são cardiopatia crônica, diabete e doenças pulmonares. Em pessoas abaixo dos 60 anos, destacam-se a obesidade e a imunodepressão.
“O que a gente sabe é que o maior impacto é o controle dessas doenças, não somente ter ou não. É fundamental saber se estava fazendo acompanhamento, se estava controlado, fazendo exames. Em relação a gênero, tem nas estatísticas que homens adoecem mais, têm hábitos que fazem com que tenham mais diabete, mais hipertensão e são pacientes que vão menos se cuidar, por causa do trabalho ou de resistência”, analisa Denize, da SBMFC.
No quesito raça/cor, ela diz que o principal problema é acesso à menor oferta de consultas disponíveis na rede pública de saúde. Além disso, a médica ressalta que o fato de negros terem mais doenças crônicas não é uma questão genética, como se costuma ouvir. “Isso é muito mais relacionado a hábitos de vida anteriores à gestação e mais ligados a condições de vida do que presença ou não de gene”, afirma. Ela exemplifica com a privação alimentar, que leva à maior propensão de desnutrição em filhos de mulheres negras.
A marca dos 10 mil
O médico clínico Paulo Olzon, infectologista da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), avalia que, de certa forma, não haveria tantos problemas em deixar as pessoas circulando pelas ruas da capital paulista. “Na medida que tem pessoas circulando na rua, tem espaço maior para dispersão do vírus. Qual é a lógica que tem fechar parques e as pessoas estarem trabalhando, dentro de metrô, dentro de ônibus fechado?”, questiona.
Para o médico, a imunidade de grupo vem à medida que se entra em contato com o vírus e as pessoas vão adquirindo imunidade. Porém, a cidade de São Paulo não adotou lockdown e, mesmo com decreto de quarentena, os índices de isolamento, na maioria dos dias, eram baixos e os casos iam aumentando.
Denize afirma que era natural que a capital paulista tivesse mais óbitos, uma vez que a pandemia veio importada no contexto de pessoas que viajaram ao exterior, e que a expansão ocorresse do centro para a periferia. “Como São Paulo foi a capital que logo teve essa possibilidade de fazer quarentena, nem que não tenha decretado lockdown, as primeiras pessoas a serem protegidas foram as que tinham possibilidade de ficar em casa. Posteriormente, começa a ver em fim de março e começo de abril uma expansão para os locais periféricos, pessoas que vão continuar circulando: porteiro, faxineiro, empregado doméstico, andando de ônibus”, diz.
Com a reabertura do comércio ocorrendo de forma gradual, Olzon acredita que o município pode enfrentar um pequeno aumento de casos de infecção, mas que depois vai diminuir. Denize considera que, “aparentemente”, não haverá uma explosão de casos e que uma estabilização no número diário de mortes vem sendo mantida desde o fim de abril e início de maio. “Não é baixo, é consideravelmente alto, mas se mantém o ritmo e agora no fim de julho se vê diminuição lenta.”
Ela comenta que essa desaceleração está acontecendo da mesma maneira que ocorreu em outros países e de forma geral, mesmo em lugares onde não se fez isolamento absoluto. “Chega uma hora que a gente atinge um ponto meio que de equilíbrio”, diz. Denize explica que o curso epidêmico vai se atenuando com o tempo, há menos pessoas doentes a cada semana e, consequentemente, menos pessoas em situação grave.
Além disso, após cinco meses de pandemia no País, as equipes de saúde estão mais treinadas e mais capazes de reconhecer protocolos, organizar os pacientes por gravidade e fazer intervenções que realmente melhoram a vida das pessoas. “O manejo da doença fica melhor com o curso do tempo e a qualidade do cuidado prestado aumenta enquanto o número de pessoas adoecendo diminui. Então, tenho mais tempo de dedicação das equipes para cada paciente. Direta ou indiretamente, pode ser um fator que contribui para menos óbitos”, afirma Denize. Por causa dessas reduções, a cidade desativou alguns hospitais de campanha erguidos no começo da pandemia.
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