quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

O que impede impeachment é achar que ele não pode acontecer

Marcelo Coelho

Para lembrar um lema da ditadura, ninguém segura esse imbecil 

Domingo passado, participei da minha primeira carreata. Não era bem a minha turma. A manifestação foi organizada por movimentos de direita, como o MBL e o Vem Pra Rua. Mas contra Bolsonaro toda aliança é bem-vinda, necessária.

A carreata “vermelha”, no sábado à tarde, me pegou ocupado; eu teria prazer em comparecer às duas.

Fui na carreata “amarela”. Fácil reencontrar, no estacionamento do Pacaembu, algumas figurinhas típicas.

Esquerda e direita organizam carreatas a favor do impeachment de Bolsonaro em São PauloEsquerda e direita organizam carreatas a favor do impeachment de Bolsonaro em São Paulo

O bronzeadão da academia, exibindo os peitorais invejáveis e o tênis de R$ .000. A senhora Também Sou Classe Média com o cabelo pintado de loiro, para combinar com a camisa da seleção. O senhor Homem de Bem, com a paciência no cheque especial. Madame Cumbica, que adiou mais uma vez sua passagem para Paris.

Mas vi também dois jovens negros, com cabelo Carlinhos Brown. Num carro, o adesivo a favor da Lava Jato convivia com o ecológico panda do WWF. Vi um “Fora Bozo” ao lado do rosário de Aparecida. Aqui e ali, o arco-íris do movimento gay.

Gente fina é outra coisa. A carreata saiu na hora certa; na avenida Paulista, parávamos para a travessia de pedestres, a menos que os guardas de trânsito ordenassem o contrário.

Vi algumas manifestações de apoio das pessoas na calçada —mas muita gente prosseguia indiferente no passeio de domingo.

Também na Paulista, e não sei se foi contra ou a favor, ouvi uma explosão bem perto do meu carro. Rojão apontado para baixo, ou bomba de efeito moral de algum miliciano de folga?

Bem, talvez eu quisesse um pouco mais de emoções. Numa carreata, não dá nem para saber direito quantos somos. A interação é inexistente.

Sempre se pode topar com alguma criatividade. Uma criança, imagino, mostrava do banco do passageiro um daqueles cocozinhos de emoji, em versão inflável. Falta um cocô gigante para rememorar o pato da Fiesp.

Outro carro amarrou, em vez da bandeira pátria, um saco preto de lixo a um cabo de vassoura. Boa saída para o dilema entre vermelhos e amarelos.

Fui ultrapassado por alguns Audis (é sempre essa marca que me faz comer poeira) e, quando vi, tinha apenas as viaturas de trânsito atrás de mim.

Não esmoreceu, contudo, meu espírito de neokataguirista. Colei na traseira de um Land Rover com a bandeira brasileira e fui descendo a Brigadeiro Luís Antônio, com discretos toques ritmados de buzina. Até que uma hora o meu carro-guia deu sinal para a direita —trocadilho à parte—, e embicou no rumo dos Jardins.

Não havia mais ninguém. Eu me desgarrara dos pares, ou talvez seja assim mesmo que carreatas se dispersam.

Que não seja este o prenúncio do que estão por vir.

Faço graça, mas é excelente notícia que muitos eleitores de Bolsonaro estejam pressionando por seu impeachment.

Tudo parece agir contra sua permanência. O presidente exerce há mais de um ano sua militância criminosa em favor da Covid-19, com a ajuda de um general abobado, cujo único talento é o de conseguir rastejar usando quatro patas.

A inflação dos alimentos cresce, o auxílio emergencial diminui, o comércio sufoca e o sacrossanto equilíbrio das contas públicas foi para o espaço, onde gravitam Paulo Guedes e o ministro astronauta, sem contato com a Terra.

Bolsonaro perdeu Sergio Moro e Donald Trump. Quem esperava o fim da corrupção acompanha agora os processos da rachadinha e os acordos com o centrão. Quem apostava numa aliança com os Estados Unidos vê o Brasil isolar-se mais e mais no plano internacional.

Mesmo que não tenha o poder de outros tempos, a Globo critica o presidente sem parar. Na semana passada, todos os erros e crimes escancarados do governo vieram à tona, com destaque para Manaus.

Enquanto isso, os brucutus da logística, os baba-barbas do Itamaraty, os bandidões sem máscara, os jumentos de farda e o King Kong que manda neles sequer conseguiram articular um discurso que pudesse ser repetido por apoiadores.

Quem esgoelava confiança em um novo Brasil hoje passa vergonha. “Ô, mas ainda assim é melhor que o PT.” Não é. E o dito perigo do PT está longe.

Nem Guedes nem Mourão disfarçam a saturação. O instinto de furar a fila da vacina é mais forte do que o de seguir as bazófias de Bolsonaro. Para lembrar um lema da ditadura, ninguém segura esse imbecil.

Grupos de direita se mobilizam enquanto há ceticismo na esquerda. Mas o que impede o impeachment é achar que ele não pode acontecer.



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