Governo continuará enquanto o capital se sentir mais seguro nas mãos de milícias que da democracia
No dia seguinte ao ataque das milícias trumpistas ao Congresso americano, a colunista Masha Gessen postou um texto sobre o medo, no site da revista The New Yorker. Ecoava, no calor da hora, o que não passou despercebido a ninguém: se fossem negros ou muçulmanos que estivessem ali para protestar pacificamente, sua sorte teria sido outra.
Imagens que viralizaram nos dias seguintes mostravam policiais inertes ou colaborando com os invasores, enquanto colegas em franca desvantagem tentavam deter a violência. Notícias posteriores levantaram suspeitas sobre a presença dos vândalos no Capitólio, em reconhecimento de campo, na véspera da invasão.
Mesmo depois do ataque, 139 deputados e oito senadores republicanos prosseguiram com a farsa de Trump, votando contra a confirmação de Joe Biden, em princípio uma formalidade, com base nas falsas alegações de fraude propaladas pelo presidente.
Gessen levanta duas hipóteses para a leniência das autoridades: ou estavam mancomunadas com os vândalos ou não levaram o perigo a sério. Descartando a primeira como teoria da conspiração, vê-se forçada a concluir que as forças da ordem (mas também muitos congressistas) não temiam os invasores.
O argumento de Gessen transfere o foco do presidente e de sua turba de enviados para quem abriu o flanco da democracia. No caso, a falta de medo não é coragem. É resultado de reconhecimento e identificação.
Dois dias depois do ataque ao Capitólio, um ensaio de Timothy Snyder (autor de “Sobre a Tirania”, Companhia das Letras) veio arrematar o raciocínio de Gessen. Em “The American Abyss” (o abismo americano), publicado no jornal The New York Times, o historiador divide os republicanos entre os adeptos da manobra (“gamers”) e os partidários da ruptura “antissistema” (“breakers”). Os primeiros acreditam poder manipular as brechas da democracia até o limite da decência; os segundos não estão nem aí para decência nem democracia.
Snyder define o Partido Republicano até Trump como uma série de manobras, dentro da democracia, para manter o poder e os interesses de uma minoria socioeconômica. A aventura trumpista seduziu os “gamers” com a tentação populista que a Segunda Guerra havia proscrito como inimigo.
De fato, como resistir a uma legião de eleitores que se sente lisonjeada e representada por um candidato milionário que não esconde sua preferência pelos ignorantes? A demagogia fascista deixa de representar o mal, que passa a ser projetado em negros, mulheres e população LGBT, transformados em bode expiatório, ameaça do outro, alucinação de comunismo.
Snyder vê os Estados Unidos numa encruzilhada pré-fascista, mas atribui o fracasso da tentativa de golpe ao fato de Trump não representar uma ideologia, mas simplesmente seus interesses pessoais e familiares. O mesmo se poderia dizer de Jair Bolsonaro, com a diferença de que Trump alijou os militares e não há golpe de Estado sem eles.
Ao contrário de Trump, que depois de incitar a turba a invadir o Congresso foi assistir ao caos pela TV, Bolsonaro liderou uma marcha de coação ao STF, ainda em maio, acompanhado de seus ministros militares, do ministro da Economia e de uma guilda de empresários, contra as medidas sanitárias na pandemia.
Loucos, canalhas e sociopatas existem em qualquer lugar, mas não precisam ser eleitos. Bolsonaro e seu séquito ideológico não são causa, mas sintoma. O problema do Brasil não são os “breakers”, mas os “gamers”, quem não tem medo nem vergonha de apoiar um governo que trabalha abertamente contra os brasileiros e que ultrapassou todos os limites da decência ao longo da pandemia, culminando na incúria das vacinas.
Nosso problema é o oportunista de visão curta, para quem tanto faz deixar a saúde, a ciência e a educação nas mãos de idiotas e incompetentes, porque acredita que sempre poderá vacinar a família e educar os filhos em outro lugar.
A falta de medo está associada à falta de vergonha. O negacionista desmentido pelos fatos segue inabalável.
Bolsonaro e seu governo de ineptos continuarão aí, destruindo o que resta, até quebrar o país, enquanto o dinheiro brasileiro tiver opções que o resto da população não tem, enquanto o capital brasileiro se sentir mais seguro nas mãos de milícias do que da democracia.
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