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sábado, 3 de abril de 2021

Drauzio Varella: o que a pandemia me ensinou sobre os irresponsáveis do Brasil


O oncologista reflete sobre o resultado desastroso da crise de saúde no país e diz que Bolsonaro e os médicos que apoiam tratamentos não comprovados contra a doença são coautores da tragédia


Tenho 77 anos, idade suficiente para ser realista e não repetir os equívocos da juventude. Eu esperava que as coisas seriam difíceis no Brasil durante a pandemia em razão dos obstáculos que boa parte da população brasileira enfrenta diariamente. Mas não imaginava que seriam tão difíceis. Sabia que quem vive do pequeno comércio sofreria, que aqueles que têm condições de moradia mais precárias teriam dificuldade em isolar os seus. Mas nunca imaginei que fôssemos viver um enfrentamento selvagem, com festas, aglomerações e a disseminação do vírus por pessoas que parecem não se preocupar com a vida de seus próprios familiares. A palavra correta para descrever o comportamento de muitos brasileiros é a selvageria. E temo estar ofendendo os selvagens ao fazer uso dela.

O caos a que estamos assistindo nos hospitais é um efeito direto da violência que domina parte do povo brasileiro. Basta olharmos os dados. Crianças morrem sem parar em tiroteios. Na Europa, nos Estados Unidos, episódios assim teriam impacto nacional e suscitariam uma grande discussão. Aqui, estamos anestesiados. Quando alguém é assaltado na rua, dá graças a Deus por não ter levado um tiro. A violência contra a mulher é absurda e tem aumentado. Quando vemos bares lotados enquanto mais de 2 mil pessoas morrem por dia vítimas do coronavírus, não é violência? Em meio a uma pandemia, aquele que se expõe porque sabe que poderá ter melhores condições de tratamento acaba expondo outras pessoas que não têm a mesma sorte. Coloca em perigo também seus pais e avós. Como esperar, então, que uma pessoa capaz de colocar a própria família em risco tenha consciência do mal que causa à sociedade?

Uma parte da população brasileira negligencia a morte. Nada parece comover essa gente. Nem os números crescentes de vítimas, nem as famílias desesperadas nas portas dos hospitais, em cenas mostradas diariamente pela TV. E se as 260 mil vidas perdidas não sensibilizaram esse grupo, nada sensibiliza. Estamos assistindo agora às consequências de tudo que foi feito de errado: o desmonte do Ministério da Saúde, em que técnicos foram substituídos por militares; o negacionismo do governo e do presidente da República; a ruína do programa nacional de vacinação em decorrência da falta de vacinas; e as aglomerações. Sabíamos que seria complicado isolar a população brasileira quando boa parte dela vive em condições precárias. Mas não precisávamos contar com o negacionismo, com o desestímulo ao uso de máscaras e o incitamento, por parte do presidente, para que as pessoas ignorassem os perigos do vírus.

O Brasil é o quinto país em contingente populacional e o segundo em mortes por Covid-19. Não precisava ser assim. O Brasil tem um dos programas de vacinação mais eficazes do mundo, capaz de vacinar 1 milhão de pessoas por dia. É uma referência em imunização. Mas, hoje, vacina 180 mil, no máximo. Tínhamos uma população que respeitava o calendário de imunização e que vacinava suas crianças. Hoje, temos a autoridade maior do Estado que contesta a eficácia da vacina. Diante de um futuro tão incerto, agravado pelas novas variantes mais contagiosas do vírus e pela vacinação lenta, nos encontramos reféns de uma cambada de irresponsáveis. Se houvesse mais responsabilidade, haveria menos contágio e uma menor probabilidade de tomar medidas mais drásticas de isolamento — como o que está acontecendo nos estados em que o caos se instalou no sistema de saúde. Tudo poderia ter sido diferente.

Era janeiro de 2020 quando comecei a ler sobre o que estava acontecendo na China, na cobertura da imprensa internacional. Sabia-se pouco, havia muita especulação e a verdade é que a China é um país que nem sempre tem circulação livre de notícias. Sabíamos que praticamente não havia mortes abaixo dos 70 anos de idade e que as mortes acima dos 80 eram de cerca de 12%. Não parecia nada muito pior do que as epidemias de gripe. Eu vi uma palestra do doutor Anthony Fauci, pela internet, em que ele dizia: “Olha, não há razão para essa preocupação toda. Nós vamos ter uma doença, um coronavírus mais agressivo, mas a mortalidade não parece ser maior que a da gripe”. Foi quando eu caí na besteira de gravar um vídeo falando isso. Eu disse: “Não há necessidade desse medo todo. Esses coronavírus causam resfriados. E não é por causa disso, aparentemente, que teremos um problema maior”. O ministro do Meio Ambiente pegou esse vídeo do começo de janeiro e replicou em março, quando tudo havia mudado.

Percebi que estávamos diante de um problema grave quando a doença chegou à Itália. Era a segunda semana de fevereiro, e a primeira mensagem que recebi foi um relato de uma colega italiana falando sobre os efeitos da epidemia por lá. Ela usava um tom dramático, que, confesso, me causou má impressão. Mas o quadro pulmonar que ela descrevia tinha tudo a ver com os coronavírus. Foi então que eu me dei conta: “Se esse coronavírus provoca um quadro pulmonar com essas características, pode ser muito mais grave do que eu estava imaginando. Do que muitos estavam imaginando”.

Naquele momento, não pensei que pudéssemos ter desdobramentos políticos dessa doença. E nunca imaginei que isso pudesse acontecer comigo, porque eu nunca me meti em política. Sempre falei de saúde, e só. Nunca declarei meu voto, embora eu tenha sido muito assediado por políticos em várias eleições. Eles nos procuram para buscar apoio em campanha, para fazer parte do governo, enfim. E eu sempre respondi que não. Mas o ministro, que eu sempre esqueço o nome (e acho até bom esquecer mesmo), postou meu vídeo em alguma rede social. E, embora tenhamos conseguido tirá-lo do ar, a confusão já estava feita. Quando vi que a pandemia havia se tornado uma questão política, tive consciência plena de que não daria certo, e que nós viveríamos uma grande tragédia no Brasil.

Na primeira vez que vi o presidente da República criticando o isolamento social em razão do impacto que isso poderia ter na economia, eu pensei: “Ele está errado, mas pode ser que ele tenha até uma boa intenção. Está errado porque o que mantém a economia paralisada não é o isolamento, é o vírus”. Mas abandonei qualquer ideia de boa intenção quando o vi saindo sem máscara, abraçando as pessoas. Para mim, foi o momento mais revoltante de toda a pandemia. Pensei: “Esse homem vai trabalhar para disseminar o vírus”. E o tempo mostrou que essa impressão era verdadeira. Ele é o grande responsável. Não é o único, lógico. São corresponsáveis governadores, prefeitos, autoridades e as pessoas que se aglomeram nas ruas sem máscara. Quem não se lembra do Osmar Terra dizendo que não passaríamos de 2 mil mortos? Ou dos ministros generais fazendo cálculos irreais mostrando que morria menos gente no Brasil do que na Alemanha, proporcionalmente, sem levar em conta que a epidemia havia chegado antes à Europa? Mas o maior responsável é ele, pelo cargo que ocupa como presidente e pelo alcance de seus atos, como quando coloca em xeque a eficácia do uso de máscaras no momento de maior agravamento da doença no Brasil.

Fiquei surpreso com a politização de parte da classe médica durante a epidemia. Primeiro, por terem embarcado nesse suposto “tratamento precoce” sem nenhuma evidência científica. Essa situação expõe o grande problema que temos hoje nas universidades: elas formam profissionais que não têm noção do que é o pensamento científico. E isso acontece não só na medicina, embora na medicina seja mais chocante. Isso é muito grave, porque é o pensamento científico que nos permite entender os dados e analisá-los. Sem essa bagagem, você lê o estudo sobre o uso da cloroquina feito na França e encontra sentido naquilo. Quem tem o mínimo de formação científica percebe que ele não poderia ser levado a sério. No entanto, criou-se um movimento mundial de médicos despreparados defendendo o uso desse medicamento, dando uma falsa impressão de que havia dúvida no meio científico sobre esse assunto, quando, na verdade, não havia dúvida nenhuma.

O mundo gastou um dinheirão financiando estudos para avaliar a eficácia da cloroquina. Quem não quereria que uma droga barata, conhecida, com perfil de toxicidade bem definido fosse eficaz contra o coronavírus? Todos queriam. Mas os resultados foram decepcionantes. No Brasil, foi um pouco pior. Não só gastamos dinheiro em estudos, como também empregamos recursos públicos na fabricação do medicamento. Esse discurso de “tratamento precoce” conquistou uma parte da população e deu uma falsa sensação de segurança. Isso foi uma tragédia, infelizmente, com coautores médicos, que usam a pandemia para defender suas posições políticas.

Tenho 54 anos de medicina. Conheço muita gente. Passei a vida no meio de médicos. E não conheço nenhum — por quem eu tenha respeito profissional, que eu considere um bom médico, uma pessoa estudiosa e competente — que tenha sido a favor desses tratamentos inventados, com ivermectina, cloroquina e etc. O que aconteceu, na verdade, é que a pandemia escancarou o movimento político que existe dentro da classe médica que apoiou o presidente da República em tudo. E o Conselho Federal de Medicina teve uma posição indesculpável nesse aspecto, que é vista como absurda pelos médicos estudiosos.

No auge de uma pandemia, a função de um conselho de medicina é definir qual é a linha de conduta. Um remédio que não tem ação não pode ser usado para uma doença. Se eu tenho uma doente com câncer de mama e dou a ela um medicamento para artrite reumatoide, eu posso ser punido legalmente pelo conselho, porque estou prejudicando essa pessoa. Mas o que acontece com esses médicos que aparecem na internet defendendo esses tratamentos milagrosos? Nada. O conselho diz que é o direito do médico. E isso é um comportamento antiético. Basta ver o que aconteceu nos Estados Unidos. O então presidente Donald Trump, de início, defendeu a cloroquina. Depois, viu que os comprimidos encalharam e doou para o Brasil. Os médicos americanos não prescreveram porque podem ser processados pelos conselhos ou pela Justiça comum por utilizar um medicamento sem ação demonstrada. Fizemos, no Brasil, um papel ridículo diante da comunidade científica.

Eu tive sorte. Não perdi nenhum familiar e nem eu nem minha mulher pegamos a doença. Meu enteado, a esposa e a filhinha pegaram, mas com sintomas leves. No entanto, perdi amigos queridos. Eu tenho um grupo de ex-carcereiros da Casa de Detenção, no passado conhecida como Carandiru, e, antes da pandemia, nos encontrávamos periodicamente, a cada duas, três semanas, para tomar chope, conversar e falar de cadeia. Esses temas de cadeia eu não converso em casa, nem eles. A família não tem a obrigação de ouvir essas histórias. Então, quando a gente se reúne, só se fala de cadeia o tempo inteiro. Cada um conta um caso. Quando esses homens começam a falar das coisas que viram, você diz: “Não é possível, o cara viveu cinco vidas, porque numa só não dá tempo de viver tantas histórias”. Essa gente foi muito atingida pela pandemia. Eu perdi, pelo menos, três amigos íntimos desse grupo. Um dos quais faleceu em fevereiro: seu Valdemar Gonçalves, que foi meu braço direito desde que eu cheguei à Detenção. Nós tínhamos uma parceria. Ele organizava o atendimento médico, separava os prontuários e organizava os presos ou presas para levar. Era uma pessoa muito próxima. É muito duro isso.

As perdas se avolumam, as mortes deverão aumentar seu ritmo, e eu não creio que ficaremos livres da doença. Mesmo com a vacina, ela vai continuar por aí. Mesmo que o Ministério da Saúde demonstre uma capacidade que ele não tem. Mesmo que estivéssemos em condições ideais, com vacina e uma gestão capaz, o vírus não desapareceria. Ele vai ficar endêmico, como são endêmicas as gripes, os resfriados. Talvez precisemos, no futuro, modificar a composição das vacinas, como se faz com as gripes, porque as mutações são inevitáveis. E vai continuar, também, porque parte da população é irresponsável e manterá a epidemia num certo nível, provavelmente menor do que o atual. Mas manterá. Nós vamos ter de aprender a conviver com o coronavírus.

Eu tinha uma vida muito agitada. Palestras pelo país, gravação de TV. Eu me lembro de uma semana, no mês de novembro, antes de começar a pandemia, em que peguei avião todos os dias. Em alguns deles, duas vezes, uma para ir e outra para voltar. Por isso, quando começou o isolamento, eu já havia tomado uma decisão, que venho alimentando há vários anos, de parar com a clínica particular, que tenho há quase 50 anos. Queria me dedicar a outros trabalhos, mais educativos, em que eu achava que poderia contribuir mais do que atendendo em consultório pacientes que poderiam ser muito bem atendidos por outros colegas. Meu problema foi ficar sem a cadeia. Eu tinha essa rotina de passar um dia por semana na cadeia há 32 anos, e isso eu não pude continuar fazendo. Desse período, os últimos 15 anos foram na Penitenciária Feminina, em São Paulo, que me inspirou a escrever Prisioneiras. Isso tem me pegado mais forte, porque é um trabalho que eu tenho prazer em fazer. Dentro da cadeia, eu sou um médico mesmo, de verdade. No consultório, se eu não estou, a pessoa marca consulta com outro médico. Na cadeia, não. Meu trabalho faz diferença. Eu também começaria um trabalho em um hospital público, o Pérola Byington, que tem um serviço de oncologia muito bom. Queria dar aula para os residentes, ensinar um pouco do que eu aprendi, participar das discussões e aprender com os mais jovens.

Dito isso, preciso confessar que ficar em casa mais recluso não tem me causado problema. Primeiro, porque tenho uma quantidade enorme de solicitações. Faço palestras, lives, entrevistas que tenho o prazer de dar para rádios do interior de vários estados, para televisões, falando sobre saúde. Eu acho que essa é minha obrigação no decorrer de uma pandemia. Além disso, eu escrevo. E quem escreve não fica sozinho. Tenho minhas colunas e estou escrevendo um livro, que é uma reflexão sobre o que aconteceu nos últimos 50 anos em minha vida como médico, na medicina e com o país. Não é autobiográfico. É como se fossem três trilhas que caminham juntas. Minha atividade profissional, em particular; a medicina, que quando eu me formei não tinha nada a ver com a medicina atual; e o país, que se modificou também.

Eu sempre escrevi meus livros com base nas vivências que tive. Então é muito frustrante escrever desta vez sem estar no front de combate à pandemia. Mas não tive escolha. Primeiro, porque eu não podia trabalhar em hospital nenhum, já que não me aceitariam em função da idade. Eu também adoraria estar na cadeia vendo o que está acontecendo por lá, mas é a mesma proibição. Com a vacina, eu espero tomar a segunda dose, dar um tempinho, meter uma máscara bem forte — uma N95 — e voltar ao trabalho na prisão.

Quando a pandemia começou, pensei: “Mesmo ficando em casa o tempo todo, não posso parar de fazer exercício de jeito nenhum”. E comecei a me exercitar no prédio onde moro, subindo escadas. O prédio tem 16 andares. Eu subo, depois desço pelo elevador, e subo outra vez. E corro de manhã cedinho na rua, por volta das 5h30, quando ainda não há movimento. Faço isso de maneira alternada: corro duas vezes por semana e subo escada três vezes. A corrida costuma levar uma hora e meia. Em resumo: mantive minha rotina de exercícios na pandemia e ainda emagreci 3 quilos, porque passei a comer em casa, de forma mais saudável. Também consegui ver mais filmes e séries. Tenho um amigo que entende muito de cinema. É o Isay Weinfeld, que é arquiteto, e faz algumas indicações a que eu assisto com minha mulher nessas plataformas Criterion e Mubi. São filmes complicados, mas eu me esforço para ver, para não passar humilhação depois. Antes, eu não tinha tempo para nada. Até conseguia ir ao cinema em um fim de semana, mas ver uma série na televisão era impossível. Fora isso, também tenho muita coisa para ler, muitos livros que recebo dos próprios livreiros. Fico até desesperado. Aí começo a ler dois ao mesmo tempo. Três, às vezes.

Há alguns livros que estão parados na estante, e que eu sempre esperei um período de maior tranquilidade para lê-los. Um é Anna Karenina, do Tolstói, e o outro é Os irmãos Karamázov, do Dostoiévski. Mas veio a pandemia, e eu ainda não tive coragem de começar. Tenho um pouco de preguiça porque sei que eles vão tomar meu tempo todo por meses. Aí não vou poder ler mais nada. Sem contar a medicina, que eu continuo acompanhando, lendo, estudando. A medicina é uma profissão muito egoísta.

A história da humanidade é cheia de exemplos de germes com potencial para causar uma epidemia. Mas uma coisa é falar e outra coisa é viver a realidade. É muito diferente ver as pessoas adoecendo de perto, sobretudo amigos. Perder pessoas queridas, ver a devastação que vai acontecendo no país, pensar que temos 260 mil mortos num contingente de 210 milhões de habitantes… Ou seja, em cada 1.000 pessoas, mais de uma morreu. Cada vez a doença se dissemina e pega mais gente que achava que havia escapado. Essa realidade é muito triste, sobretudo porque essas pessoas morreram por uma doença evitável. Se não tivessem pego o vírus, não teriam morrido. Não são 260 mil pessoas que tiveram ataque cardíaco, câncer no cérebro, doenças de causas, muitas vezes, até inevitáveis. São pessoas que pegaram o vírus. Se não tivessem pego, estariam aqui.

Diante desse quadro, eu às vezes me canso do Brasil. Mas aí penso que sou brasileiro e que tenho um compromisso com o país. Eu estudei no Brasil, em uma universidade pública. Gosto da música, das pessoas. Eu não seria feliz em outro lugar. Já tive a oportunidade de fazer medicina nos Estados Unidos, mas nunca me interessei. Eu era adulto, estudante universitário, quando veio a ditadura, que durou 20 anos e foi terrível. Sumiam pessoas, matavam gente. E você tinha do outro lado radicais que assaltavam bancos e faziam guerrilha urbana. A mão do Estado veio com toda a força em cima dessa oposição. Quanta gente foi torturada! Quanta gente inocente, por razões variadas, foi presa! Gente que carregou traumas pela vida inteira. E nós sobrevivemos a isso. Por isso penso que o presente é melhor. Pelo menos os jornais estão funcionando até aqui, assim como a Justiça. Existe uma esperança de que a gente consiga sair desse quadro autoritário para um sistema mais decente. Isso vai melhorar. Vai permanecer assim por um tempo, mas não para sempre.

Uma vez, eu estava com o Exército no Pico da Neblina, que é um território ianomâmi. Estávamos gravando um documentário. Quando voltávamos da fronteira com a Venezuela para o Brasil, paramos numa comunidade ianomâmi e descemos para conversar com eles. Eu fiquei filmando num centro comunitário na aldeia, coberto de palha, bem típico. Quando acabamos de gravar, fui conversar com as mulheres. Como viviam isoladas, falavam português muito mal. De repente, uma delas me disse: “A gente conhece o senhor”. Eu falei: “De onde vocês me conhecem?”. Ela falou: “Da televisão”. Aí ela apontou para uma antena parabólica doada pela Igreja. Eu falei: “Vocês entendem o que eu falo?”, Ela disse: “Um pouco”. Eu fiquei tão impressionado com aquilo! Eu falo na frente de uma câmera e essas mulheres, essas senhoras, ouvem e entendem um pouco? Que privilégio é atingir este Brasil imenso. Quem foi o médico que teve esse privilégio?

Outro exemplo desse alcance é meu site, que criei em 1999 para guardar as entrevistas que dava e os artigos que escrevia. Hoje ele virou um canal no YouTube, no Instagram, no Facebook etc. Essas redes sociais chamam para as matérias que estão no site. O site tem de 10 milhões a 12 milhões de acessos por mês. O Facebook tem 2 milhões de seguidores. Esses números são um absurdo, muito grandes. Somando todas as redes, calculamos que cerca de 20 milhões de pessoas sejam impactadas. Olha a capacidade de informação que conseguimos transmitir! E aí existem aqueles que nos atacam com robôs. Mas eu não me preocupo com isso. Eles que ataquem. Temos vídeos com mais de 1 milhão de acessos. Isso é mais importante do que qualquer ataque. Quando você sabe aquilo que quer, não pode ficar impressionado com a opinião de meia dúzia de pessoas, porque, senão, não faz nada na vida.

Nesse grupo de carcereiros, a maioria é bolsonarista. Mas não discutimos de jeito nenhum. São pessoas das quais eu gosto. Não vou brigar com eles por causa de política. Daqui a pouco os políticos se entendem e perdemos amigos inutilmente. Nossa tendência é sempre nos relacionarmos com pessoas que pensam como nós, que têm o mesmo nível socioeconômico. Essa convivência com os iguais nos traz segurança, um sentimento de proteção. Mas isso também tem um lado ruim: torna nosso mundo estreito. As pessoas passam a pensar do mesmo jeito, usar o mesmo tipo de roupa, ter um carro parecido. Mas quando convivemos com ladrão que está preso, mas que fugiu de casa aos 6 anos de idade porque era espancado pelo padrasto, entramos no universo de uma pessoa que saiu para viver na rua com a sabedoria dos 6 anos. Diante disso, adquire-se uma visão da complexidade que é a existência humana. E, uma vez que você tem essa visão, é muito difícil abdicar dela. A vida fica mais pobre.

Por isso sinto falta do movimento que minha vida costumava ter. Andar pelo Brasil trabalhando, gravando, entrando na casa das pessoas, nas periferias das cidades. Ver as condições em que elas vivem, ouvir o que pensam. E sinto falta do atendimento nas cadeias. Dá para viver sem essas coisas. Se eu não puder mais fazer, dá para viver. Mas a vida fica pior. Sinto falta da cadeia, de conviver com esse grupo de carcereiros, sentar com eles em um bar, tomar cerveja, dar risada, ouvir as histórias que eles contam…

terça-feira, 30 de março de 2021

"Bolsonaro tem que responder criminalmente pelo que tem feito", diz Drauzio Varella


‘Ninguém tem ideia do caos nas UTIs’, diz Drauzio

Para o oncologista, o Sistema Único de Saúde é o maior programa de distribuição de renda do país, porque permite a qualquer pessoa ter acesso a procedimentos de alta complexidade

Por Leila Souza Lim

“Meu sentimento hoje é de revolta”, diz angustiado o médico Drauzio Varella, ao falar do campo arrasado que é a pandemia no Brasil. Depois de ver na última semana o país firmar posição no topo da curva de casos e baixas de vidas por covid-19 no mundo, o oncologista salienta que evitar mortes agora exige esforços que superam a capacidade hospitalar nacional e, no curto prazo, mesmo os de vacinação.

O oncologista frisa que a situação é de caos e não está mais circunscrita à covid-19. “Nossos hospitais entraram em colapso, todos eles, no país inteiro. E esse colapso não atinge só as pessoas com covid, mas também as que têm outras doenças”, afirma.

O médico cita a situação no Hospital das Clínicas de São Paulo, um dos maiores centros médicos do país para cirurgias, destinado a tratamento de casos graves. A média de pedidos de internação ao longo de sete dias até quinta-feira passada, lembra ele, era de 364 por dia, dos quais 110 de pacientes graves não covid e 254 em estágio agudo da doença provocada pelo coronavírus.

Em tom de desabafo, lamenta que muitos ainda só tomem essa consciência quando perdem entes próximos ou tentam em vão vaga em UTIs nas unidades públicas, onde pessoas já experimentam a agonia de despertar da sedação intubadas por falta de anestésicos.

“O controle da pandemia escapou ao alcance dos serviços de saúde. Ninguém tem ideia do caos que são as UTIs hoje. Colegas na linha de frente veem acabar os medicamentos para a intubação. Agora, imagina você acordar com um tubo na garganta, sem entender nada”, relata.

“As pessoas não têm noção do que seja uma Unidade de Terapia Intensiva lotada, as equipes sem tempo, precisando reanimar um paciente, enquanto outro chora com dor”, continua o especialista, para quem a única saída agora é convencer a população de que esse combate está nas mãos de cada cidadão. Segundo Drauzio, nem mesmo o recente reposicionamento do governo em relação às vacinas traria resposta imediata.

Depois de mais de um ano desprezando o trabalho dos laboratórios e medidas sanitárias, o presidente Jair Bolsonaro (Milícia - RJ) se viu sob forte pressão no campo político e prometeu na semana passada o “ano da vacinação dos brasileiros contra a covid-19”. Na visão de Drauzio Varella, contudo, perdeu-se o timing para conter a segunda onda da covid-19 no curto prazo com imunização em massa, e a medida nunca poderia ter sido a principal aposta.

Razão de queixas diárias de técnicos em saúde, a vacinação progride claudicante no Brasil pelo fato de o Executivo federal não ter dado crédito à ciência, enquanto o resto do mundo corria para assegurar doses.

“Vacinação? Esquece, é como se as vacinas não existissem [neste momento, para conter o agravamento da doença]. Pensa comigo, se você pega o vírus hoje numa festa, os primeiros sintomas virão cinco, seis dias depois. Aí você perde o olfato, fica enjoada, sente dor no corpo, a primeira semana vai ser mais ou menos bem para todo mundo. As complicações vão surgindo pelo oitavo, nono, décimo dia. Não se morre de cara... Em grande parte dos casos, a pessoa morre quatro semanas depois de pegar o vírus”, observa o oncologista.

Para ele, a crise sanitária chegou a tal ponto de desgoverno que só uma grande mobilização em torno do isolamento social pode impedir que o país protagonize muito em breve a maior das catástrofes entre as nações atingidas. E para quem ficou assombrado ao ver o Brasil cruzar a barreira de 300 mil registros oficiais de óbitos na semana passada, Drauzio resigna-se por não ter perspectivas mais otimistas.

“Nesse ritmo, é questão de uns 70, 75 dias. Já no fim de maio, chegaremos às 400 mil mortes no Brasil. Como a saúde vai dar conta de uma coisa dessas? Impossível”, diz.

“Se conseguíssemos vacinar todos os brasileiros no fim de semana, o que ia acontecer com a mortalidade? Nada, absolutamente nada, porque o número de mortes conta a história da epidemia do passado. E nós teríamos pelo menos no mês de abril o mesmo número de óbitos, como se não houvéssemos vacinado. Agora, você imagina com essa imunização incipiente, a conta-gotas...”, comenta o médico.

O médico faz sua parte para informar ao máximo sobre a doença e os riscos. Mas argumenta que nem ele nem colegas médicos ou cientistas podem alterar a realidade sem que lideranças do país mudem as mensagens e o curso das políticas de enfrentamento à pandemia adotadas desde março de 2020.

Negacionismo é uma palavra muito leve para caracterizar essas pessoas, isso é fingir que algo não existe. O que fizeram foi tomar atitudes para disseminar a epidemia. Agiram ativamente, comandados pelo presidente da República, que é o maior responsável por tudo o que estamos vendo”, afirma o especialista.

Drauzio diz reconhecer que uma nação com mais de 50 milhões de pessoas empobrecidas e acima de 10 milhões na pobreza extrema não poderia fazer um lockdown de fato. “Então já partimos da situação de um país com tremenda desigualdade social, uma das maiores do mundo, que não ia ter condição de fazer isolamento social como o fizeram países ricos da Europa e Ásia.”

Mas o médico faz questão de reafirmar, porém, que a aceleração dos indicadores de casos e mortes contou com colaboração decisiva do presidente da República. Segundo ressalta ele, Bolsonaro partiu do princípio de que a economia tinha que ser preservada e que as pessoas tinham que trabalhar. Para Drauzio, o mais grave foi que presidente não só tratou o distanciamento social como algo desimportante, mas deu exemplo contrário às medidas de proteção.

“Sim, ele. Ao não usar máscara, ao provocar aglomerações. E tem feito isso ininterruptamente durante toda epidemia, desde o primeiro caso no Brasil, até as 300 mil mortes.” Ao comentar que leu e gostou do manifesto assinado por economistas e banqueiros instando o governo federal a coordenar um plano nacional de combate à pandemia, faz ressalva para dizer que achou a atitude tardia. “Tem um problema de timing, um ano para fazer isso?”, indaga.

“O que paralisa a economia é a epidemia. Cinco montadoras deram férias coletivas para seus funcionários. Por que fazem isso? Porque temos uma epidemia descontrolada, e elas não têm condições de dar segurança aos funcionários no trabalho.”

É impossível não notar, em mais de 40 minutos de conversa, que o médico que sempre defendeu qualidade de vida, os mais pobres e o acesso universal à saúde não pronuncia uma só vez o nome do presidente. E preocupado por demonstrar irritação, o oncologista faz mais de uma pausa para pedir desculpas pela contrariedade com o descaso.

Ele faz alusão ainda à fala do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que afirmou que estava “apertando o sinal amarelo”, citando “erros primários, desnecessários e inúteis” de governos, embora sem especificar diretamente a quem se referia. “Agora? Foi necessário morrerem 300 mil pessoas para eles apertarem o botão amarelo? Então estava verde?”, questiona Drauzio.

Se fosse consultado sobre o que o governo deveria fazer de imediato, o médico diz que recomendaria ao presidente Bolsonaro que primeiramente pedisse desculpas por seus erros. “Ele deveria aparecer diante da nação e pedir desculpas, dizer que estava completamente errado, e que é preciso fazer distanciamento social, coisa que ele não vai fazer. E esquecer essa bobagem de tratamento precoce.” Quase ao fim da entrevista, porém, o oncologista e escritor endurece a opinião sobre o chefe de Estado: “Eu não queria falar com o presidente, não. Porque dizer a ele para pedir desculpas é muito pouco. Acho que ele tem que responder criminalmente pelo o que tem feito. Você não pode causar uma hecatombe, uma catástrofe dessa num país, e depois dizer: ‘olha, me desculpe, eu me enganei’”.

sábado, 27 de março de 2021

A epidemia fugiu do controle, e só podemos contar com nós mesmos

Claudio Duarte

Drauzio Varella

Brasileiros decretaram o fim do coronavírus em novembro sob a justificativa de que ninguém aguentava mais ficar em casa

Os brasileiros decretaram o fim da epidemia, em novembro do ano passado. Os bares lotaram, multidões nas praias, famílias reunidas no Natal e no Ano-Novo, festas clandestinas à luz da noite espalhadas pelas cidades, Carnaval.

A justificativa para esse comportamento estúpido era a de que ninguém aguentava mais ficar em casa.

Em janeiro, chegaram as férias. Os hotéis dos recantos turísticos voltaram a receber hóspedes, as ruas das metrópoles se encheram de gente aglomerada sem máscara e de ônibus e trens superlotados pelos que não tinham alternativa senão trabalhar.

Alheio a tudo, o presidente da República passeava de jet ski, cumprimentava admiradores e posava sem máscara para selfies, o Ministério da Saúde distribuía o kit Covid, deputados e senadores tentavam aprovar uma emenda à Constituição para livrá-los da prisão em flagrante e faltava coragem à maioria de governadores e prefeitos para decretar medidas rígidas de afastamento social.

Os médicos, os sanitaristas e os epidemiologistas que alertavam para as dimensões da tragédia em gestação eram considerados alarmistas e defensores de interesses políticos escusos.

Deu no que deu: 300 mil mortos, hospitais com UTIs sem leitos para oferecer aos doentes graves, milhares de pacientes morrendo à espera de uma vaga.

O que acontecerá nas próximas semanas? Chegaremos a 400 mil mortes?

Os hospitais brasileiros estão em colapso. Os infectados foram tantos que abrir mais leitos em UTI é enxugar gelo. Os gestores investem em equipamentos e profissionais para abrir vagas que serão ocupadas em menos de 24 horas.

O número de óbitos em casa e nas unidades básicas de saúde despreparadas para o atendimento é enorme. Os estoques de medicamentos para a sedação dos doentes entubados chegam ao fim. Começam a faltar até corticosteroides e anticoagulantes, medicações de baixo custo que o Ministério da Saúde não se preocupou em adquirir.

As vacinas perderam o "timing" para conter a escalada atual. Ainda que fosse possível vacinar todos os brasileiros neste fim de semana, as mortes continuariam a se suceder da mesma forma, pelo menos durante o mês de abril e uma parte de maio.

Vejam a situação de São Paulo, o estado que conta com o sistema de saúde mais organizado do país. No pico da primeira onda, dispúnhamos de cerca de 9.000 leitos de UTI, agora temos 14 mil, lotados. No dia 17 de março havia pelo menos 1.400 pessoas à espera de internação em UTI.

O maior complexo de saúde do Brasil, o Hospital das Clínicas, recebia, em fevereiro, a média de 56 pedidos de internação; nos últimos sete dias foram 364, dos quais 110 estavam em estado grave por outras doenças e 254 por Covid.

Se esse é o panorama no estado mais rico, caríssima leitora, dá para imaginar o caos no resto do país?

Parece que nossos dirigentes despertaram para as dimensões da tragédia que se abateu sobre nós. Empresários e economistas enviaram um recado duro ao presidente, pena que tardio. O ministro da Economia reconheceu que sem vacinação a economia não se recupera. Só agora percebeu? Por que não disse nada em julho, quando nos foram oferecidos os 70 milhões de doses da vacina da Pfizer que o Ministério da Saúde rejeitou? Receio de magoar o chefe?

O presidente da Câmara declarou que "tudo tem limite" e que apertava "o botão amarelo". Amarelo, excelência? Enquanto 300 mil famílias perdiam entes queridos, o sinal estava verde?

Deprimente ver os malabarismos circenses do novo ministro da Saúde, ao justificar que ficava a critério da liberdade milenar do médico prescrever o tratamento precoce com drogas inúteis. Como assim, ministro? Enquanto a medicina foi praticada como o senhor defende, os colegas que me antecederam receitavam sangrias e sanguessugas.

Finalmente, sob pressão, o presidente convocou os três Poderes para um convescote político, com o pretexto de criar um comitê para gerir a crise sanitária. Incrível, não? Imaginar que uma equipe comandada por ele será capaz de nos tirar dessa situação é acreditar que mulher casada com padre vira mula sem cabeça.

A consequência mais nefasta de tantos desmandos, caro leitor, foi a de que a epidemia fugiu do controle do sistema de saúde. Daqui em diante, só podemos contar com nós mesmos.

domingo, 28 de fevereiro de 2021

Transmissão da Covid deve persistir em várias regiões do mundo por anos

A dificuldade de erradicação não significa que as mortes e o isolamento continuarão na escala atual
O futuro a Deus pertence, dizia minha avó. Em relação ao futuro do atual coronavírus, no entanto, os modelos matemáticos permitem fazer algumas previsões.

A revista Nature, uma das publicações científicas mais respeitadas do mundo, perguntou para 100 pesquisadores nas áreas de epidemiologia, infectologia, virologia e imunologia se o coronavírus que se dissemina pelos quatro cantos será erradicado.

Responderam que o vírus continuará a circular em bolsões espalhados pelo mundo 89% dos cientistas entrevistados. Segundo eles, o Sars-CoV-2 se tornará endêmico, isto é, sua transmissão persistirá por anos ou décadas em várias regiões do globo.

Quando a pergunta foi se ele será eliminado pelo menos em alguns países, apenas 40 % julgaram que isso seja provável.

A dificuldade de erradicação, entretanto, não significa que o número de mortes e a necessidade de isolamento continuarão na escala atual. O futuro dependerá de dois fatores cruciais. Um é a duração da imunidade adquirida por infecção natural e pela vacinação. Outro são as características das variantes que emergirão.

Os quatro coronavírus anteriores, causadores de resfriados comuns, e o vírus da gripe (influenza) também são endêmicos, mas convivem com a humanidade sem lockdowns e medidas restritivas ao convívio, embora a gripe cause no mundo pelo menos 650 mil mortes anuais.

Certamente, haverá países que chegarão à imunidade coletiva por meio da vacinação da quase totalidade de seus habitantes.

Ainda assim, sobrarão pessoas suscetíveis que correrão risco de adoecer, pela reintrodução do vírus trazido por viajantes oriundos de áreas em que a aderência às medidas de prevenção e os índices
de vacinação sejam baixos.

É provável que em países como o nosso, daqui a dois ou três anos, passe a existir algum grau de imunidade induzida pela doença ou pelas vacinas, capaz de nos proteger contra casos como os que
agora superlotam as UTIs.

Quando esses níveis de proteção forem alcançados, o primeiro encontro com o Sars-CoV-2 se dará na infância, fase em que os sintomas da Covid são brandos, semelhantes aos dos resfriados comuns.

Essa possibilidade faz sentido. Quatro dos outros coronavírus causam resfriados em seres humanos há centenas de anos; dois dos quais respondem por 15% das infecções respiratórias. A maioria das crianças infectadas por eles antes dos seis anos de idade desenvolve imunidade temporária, que não evita novos resfriados, mas assegura proteção contra quadros mais graves na vida adulta.

Não é possível prever se a imunidade contra o Sars-CoV-2 seguirá os mesmos passos. Os estudos mostram que os níveis de anticorpos neutralizantes produzidos contra ele começam a cair depois de seis a oito meses da doença, mas permanecem células de memória capazes de respostas imunológicas mais rápidas se houver nova infecção. Apesar de ocorrerem reinfecções pela mesma ou por variantes novas, esses casos são relativamente raros.

Ao contrário da situação atual de pandemia, mantida pelo grande número de indivíduos suscetíveis, a fase de endemia será atingida quando o número de novas infecções se mantiver relativamente estável no decorrer de anos, embora possam acontecer surtos esporádicos.

A gripe espanhola de 1918 levou 50 milhões à morte. Desde então, praticamente todas as epidemias de influenza A que se disseminaram pelo mundo foram causadas por variantes descendentes daquela de 1918. Um vírus se torna sazonal, isto é, passa a atacar em determinadas épocas do ano, quando a maior parte da população está imune a ele —por contato prévio ou vacinação.

É difícil prever quando um país como o Brasil, sem disponibilidade de vacinas em número suficiente e com tanta dificuldade em conseguir que a população use máscara e evite aglomerações, atingirá a sonhada imunidade coletiva. Quanto tempo levaremos? Um ano ou dois? Os piores dias ainda estão por vir?

domingo, 14 de fevereiro de 2021

A vacinação contra o coronavírus virou uma bagunça no Brasil

Tem cabimento vacinar terapeutas e personal trainers antes dos mais velhos, que representam 70% dos mortos?
Olha a bagunça que virou a vacinação contra o coronavírus.

Reconhecido como um dos maiores programas do mundo, ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) caberia coordenar a distribuição das vacinas e estabelecer regras rígidas para definir as localidades e os grupos que deveriam receber as primeiras doses disponíveis.

Não faltaria conhecimento a um programa com mais de 45 anos de idade, que foi capaz de eliminar a varíola e a poliomielite do país, de vacinar 18 milhões de crianças contra a poliomielite num só dia, 100 milhões de pessoas contra a H1N1 em três meses, em 2010, e 80 milhões contra a influenza, em 2020.

Agora, sem autonomia para coordenar a estratégia de vacinação, o programa houve por bem pulverizar pelo país as poucas vacinas existentes, como se a epidemia ameaçasse todos os municípios com igual virulência. Ao lado desse equívoco, facultou a estados e municípios a adoção dos critérios para estabelecer prioridades, de acordo com as realidades locais.

A falta de uma coordenação centralizada com regras válidas para o país inteiro gerou essa confusão de grupos e de pessoas que subvertem a ordem prioritária e confundem a população, incapaz de entender porque em cada cidade a vacinação chega para uns e não para outros .
Líbero/Folhapress

Profissionais formados em psicologia, biologia, veterinária, educação física, além de trabalhadores da área da saúde que nem sequer chegam perto dos doentes com Covid, são vacinados antes das mulheres e homens com mais de 80 anos. Enquanto nos entretemos com as imagens dos telejornais que mostram senhoras e senhores de 90 anos, infantilizados pelo repórter que lhes pergunta se estão felizes com a vacina, passa a boiada dos mais jovens que furam a fila.

Tem cabimento vacinar veterinários, terapeutas, personal trainers, escriturários de hospitais, antes dos mais velhos, que representam mais de 70% dos mortos? É justo proteger essa gente antes dos professores, dos policiais e de outras categorias mais expostas ao vírus?

A distribuição pulverizada das vacinas sem levar em conta a prevalência do coronavírus, as condições do sistema de saúde da localidade e as vagas disponíveis nos hospitais é demonstração inequívoca de incompetência.

Veja os exemplos do Amazonas e de Roraima, caríssima leitora: hospitais lotados, filas de doentes sentados à espera de um leito, UTIs sem vagas, pacientes transferidos para cidades a milhares de quilômetros, uma linhagem mutante do vírus bem mais contagiosa que se espalha pelo país.

Em Manaus, se somarmos aos manauaras com mais de 60 anos, aqueles com comorbidades, teremos cerca de 200 mil pessoas. No estado do Amazonas haveria 400 mil. Não seria mais lógico, neste momento, enviarmos para lá 800 mil doses de vacina, na tentativa de pôr ordem no caos e de conter a disseminação da linhagem mais perigosa? É preciso pós-doutoramento em Oxford para ter uma ideia dessas?

A imunização contra o coronavírus impõe pelo menos três grandes desafios. O primeiro é que nunca iniciamos uma campanha sem ter doses suficientes, situação a que chegamos pelas dificuldades de produção de vacinas disputadas pelo mundo inteiro e pela desídia de um governo negacionista que não se interessou em adquiri-las quando ainda havia disponibilidade.

O segundo é a necessidade de administrar duas doses da mesma vacina, com intervalo de algumas semanas: recebeu a primeira dose da Fiocruz/AstraZeneca, a segunda não pode ser a do Butantan/Sinovac, e vice-versa. Com a presente escassez, não será fácil organizar a distribuição de preparações fabricadas por empresas diferentes, para chegar de forma ordeira nas 38 mil salas de vacinação espalhadas pelo país.

O terceiro, talvez o mais grave, foi a substituição de especialistas competentes como a doutora Carla Domingues, que dirigiu o programa nacional de 2011 a 2019, por gente nomeada por afinidades corporativas e ideológicas. O atual ministro da saúde e as chefias de coordenação que retiraram das mãos do PNI o poder de decisão têm algo em comum com você e eu, prezado leitor: a falta absoluta de experiência com imunizações em massa.

Que azar. Quando o Brasil mais precisava de técnicos treinados para executar a difícil tarefa de vacinar seus habitantes, única forma de reduzir a mortalidade e dar alento à economia, caímos nas mãos de um Ministério da Saúde fragilizado, dirigido por amadores.

domingo, 31 de janeiro de 2021

Bolsonaro é o grande responsável pela disseminação da epidemia no Brasil

Drauzio Varella

Não é por acaso que somos o segundo país com o maior número de mortes

A explicação é que não há como explicar.

A formação em ciência exige humildade para analisar opiniões e ideias opostas às nossas, o contraditório é parte intrínseca do pensamento científico. Não fosse assim, até hoje acharíamos que a Terra é plana e que o Sol foi criado para girar em torno dela.

Em janeiro do ano passado, quando o novo coronavírus atormentava apenas os chineses, tive a impressão de que os casos de maior gravidade ficariam restritos aos mais velhos. Para boa parte dos especialistas a doença teria mortalidade semelhante à das gripes.

Hoje, eu me penitencio por ter feito essa avaliação apressada. Lembrar que ela foi influenciada por uma palestra do doutor Anthony Fauci, uma das maiores autoridades em moléstias infecciosas dos Estados Unidos, não me consola.

Foi em fevereiro, quando a doença semeou o terror nas UTIs da Itália, que o mundo entendeu a gravidade da ameaça. Imediatamente, os países adotaram medidas rígidas para reduzir a movimentação nas cidades e insistiram na necessidade do uso de máscaras protetoras.

No Brasil, o presidente da República contraindicou com veemência essas recomendações. O argumento foi o de que elas destruiriam a economia e matariam de fome um número maior de brasileiros, do que a doença seria capaz de fazê-lo.

Achei que ele estava errado. Primeiro, porque não havia dados para estimar o impacto de uma improvável epidemia de fome na mortalidade da população; depois, porque a história das epidemias nos mostra serem elas as responsáveis pelas repercussões negativas na economia, não o isolamento social. Enquanto circula um agente infeccioso potencialmente letal, é impossível convencer as pessoas a gastar dinheiro para estimular o crescimento econômico.

Considerei, no entanto, a possibilidade de que o empenho presidencial na defesa de estratégias para manter os empregos pudesse ter alguma lógica, hipótese abandonada quando o vi pela primeira vez sem máscara promovendo aglomerações, para delírio de apoiadores fanáticos. Se estivesse interessado em proteger a economia, de fato, qual o sentido de incentivar a adoção de comportamentos que disseminam o vírus? Por que razão não diria aos brasileiros: saiam de casa para trabalhar, mas usem máscara e evitem aglomerações?

Para enfrentar o medo de contrair o vírus repetiu à exaustão que não deveríamos acreditar nas “conversinhas” dos jornalistas, que a doença só matava os “bundões”, que deixássemos de ser “maricas” e que contávamos com a cloroquina, remédio milagroso quando administrado nas fases iniciais da doença. Não faltaram médicos que não têm o hábito de estudar ou formação científica suficiente para avaliar a qualidade dos trabalhos publicados, para lhe dar razão e preconizar a distribuição do inacreditável kit Covid.

A queda de dois ministros da Saúde que se negaram a adotar a cloroquina como política de combate à epidemia não bastou para evitar que a farmácia do Exército fosse obrigada a investir recursos preciosos na importação da droga, a preços inflacionados. A cegueira foi de tal ordem que deixamos o ex-presidente dos Estados Unidos desovar aqui os milhões de comprimidos encalhados que os médicos americanos se recusaram a prescrever, para não correr o risco de processos por más práticas.

Quando o mundo entendeu que estávamos próximos da obtenção das primeiras vacinas e os países iniciaram a corrida para comprá-las, o Brasil não estava entre eles.

Pelo contrário, o presidente se empenhou em afirmar que não seria vacinado, que ninguém era obrigado a fazê-lo contra a vontade e que os efeitos colaterais poderiam ser “terríveis”. Contra a visão dos economistas —inclusive a de seu ministro— de que a vacinação é a única forma de reativar a economia, insistiu em boicotar a imunização em massa com argumentos de fazer inveja aos grupos antivacina mais ignorantes.

Esse boicote sistemático justifica mais de 220 mil óbitos? Ele é o único culpado? É claro que não, a culpa é de muitos, especialmente dos egoístas estúpidos que se aglomeram sem máscara nos bares e nas festas. No entanto, pela natureza do cargo que ocupa, os absurdos que fala e a indignidade dos exemplos que dá, o presidente da República tem sido o grande responsável pela disseminação da epidemia. Não é por acaso que somos o segundo país com o maior número de mortes.

domingo, 25 de outubro de 2020

Fomos e seremos um experimento aleatório, único, da natureza

Drauzio Varella

Isso acontece mesmo que venhamos a descobrir que o Universo conhecido é só um dos trilhões de outros espalhados por aí

É difícil contar o número de estrelas no firmamento. Primeiro, porque são muitas; depois, como estar certos de que encontramos todas?

Esse problema é discutido no livro "Space at the Speed of of Light", escrito por Rebecca Smerthurst, astrofísica da Universidade de Oxford.

Para o cálculo do número de estrelas existentes nas galáxias que compõem o Universo, a autora se concentrou nos dados das fotografias obtidas pelo Hubble Space Telescope, em órbita ao redor da Terra desde 1990, com a função de colher imagens de estruturas desconhecidas ou pouco observadas, para além da Via Láctea.

Os astrônomos têm usado essas informações, para perscrutar o espaço mais escuro do Universo conhecido: a constelação Fornax, localizada no hemisfério sul.

A partir do número de galáxias presentes nessa constelação, eles estimam que no Universo haveria no mínimo 100 trilhões de galáxias.

Como cada uma contém em média 100 bilhões de estrelas, o número total de estrelas seria da ordem de 100 sextilhões, ou seja, 100.000.000.000.000. 000.000.000.

Imagine, leitora, que haja condições favoráveis ao surgimento da vida apenas em um, de cada quintilhão desses corpos celestes. Existiriam, então, algumas centenas de milhares de planetas na vastidão do espaço, em que a competição das espécies pelos recursos e a seleção natural poderiam levar ao aparecimento de seres inteligentes.

A existência deles responderia à eterna questão filosófica: estamos sozinhos no Universo?

Nossos ancestrais mais distantes, as primeiras bactérias, surgiram assim que a Terra esfriou o suficiente, há 3,8 bilhões de anos. Portanto, o aparecimento aleatório da vida não parece fenômeno tão difícil de ocorrer.

No entanto, das 50 bilhões de espécies que um dia viveram ou ainda habitam nosso planeta, só uma levou ao gênero Homo, 2,5 a 3,2 milhões de anos atrás. Nesse gênero, sobreviveu só o Homo sapiens, espécie capaz de elaborar raciocínios abstratos, dominar a linguagem, a resolução de problemas complexos e a composição de sinfonias. Na história da vida na Terra, o Homo sapiens ocupa 0,005% do tempo.

A evolução não tem propósito algum, não segue qualquer linha na direção de determinado objetivo, não olha o interesse da espécie, mas o do indivíduo mais apto a espalhar seus genes.

As bactérias, seres unicelulares sem nenhuma atividade semelhante ao pensamento mais rudimentar, constituem o maior sucesso evolutivo de todos os tempos: 3,8 bilhões de anos. E ainda estão por aqui, sem dar sinal de que serão extintas ou deixarão de ser o que sempre foram: seres unicelulares.

Se a criação da vida pode ser repetida com relativa facilidade em outros planetas, o aparecimento da alta inteligência deve ser fenômeno muito raro, uma vez que apenas uma espécie entre 50 bilhões desenvolveu essa habilidade.

Imaginar que em algum das centenas de milhares de planetas habitados por alguma forma de vida surgiriam seres com capacidade cognitiva tão semelhante à nossa que tornasse viável a comunicação implicaria admitir não só que as condições geológicas e climáticas tenham sido idênticas às da Terra, mas que as pressões ecológicas estiveram sincronizadas às nossas durante milhões de anos, de modo a repetir as incontáveis mutações sofridas por nossos ancestrais, na longa jornada da unicelularidade, à vida multicelular que levou aos animais vertebrados, aos mamíferos e ao homem.

Vamos citar apenas um, entre centenas de milhares de eventos ocasionais que conduziram ao Homo sapiens, por mecanismo de seleção natural.

Se, 65 milhões de anos atrás, não caísse um meteoro no México, os mamíferos estariam limitados até hoje a grupos de pequenos roedores noturnos, apavorados pela presença de dinossauros na vizinhança. Qual a probabilidade de ocorrerem eventos decisivos como esse, na mesma sequência temporal, em outro planeta?

Vamos imaginar que, a despeito da alta improbabilidade, identificássemos extraterrestres em tudo semelhantes a nós; digamos, com 99% de identidade genética.

Ainda assim, estaríamos sós, não haveria comunicação possível. Esse é o número de genes que compartilhamos com os chimpanzés.

Fomos e seremos um experimento aleatório, único, da natureza, mesmo que venhamos a descobrir que o Universo conhecido é apenas um dos trilhões de outros espalhados pelo espaço infinito.

Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

domingo, 30 de agosto de 2020

No vale-tudo da internet, conhecimento científico e opinião pessoal virou a mesma coisa


Na internet, o senso comum ganhou o mesmo status da expertise técnica

Ativistas antivacina, terraplanistas, charlatães e defensores de teorias conspiratórias divulgam ideias estapafúrdias como se tivessem o nível de conhecimento de cientistas brilhantes

A ciência é uma ilha cercada de incompreensões por todos os lados. A um só tempo, ela contradiz o senso comum, o misticismo e o pensamento mágico, formas de interpretar o mundo adotadas pela maioria.

Nos países mais desenvolvidos, as crianças ouvem falar dos princípios que regem a ciência, já nos primeiros anos da vida escolar. Infelizmente, entre nós, os estudantes entram e saem das universidades sem noção de como deve ser articulado o pensamento científico.

Quando Galileu Galilei afirmou que a Terra era um dos planetas que giravam ao redor do Sol, quase foi condenado à morte pela Inquisição. O senso comum era o de que ficávamos parados no centro do Universo, enquanto o Sol, a Lua e os demais astros orbitavam à nossa volta.

Muito mais fácil para os religiosos defender que a Terra era imóvel, como afirmava a Bíblia, do que para Galileu explicar os movimentos de translação e rotação, que ninguém conseguia enxergar nem sentir.

Quando Charles Darwin e Alfred Wallace demonstraram que a vida na Terra —e em qualquer planeta em que venha a existir— é uma eterna competição por recursos naturais limitados, na qual os menos aptos perdem a oportunidade de deixar descendentes, a reação foi tão feroz que 150 anos mais tarde
ainda existem contestadores.

No mundo da internet, o senso comum ganhou status de expertise técnica. Ativistas do movimento antivacina, terraplanistas, charlatães e os defensores de teorias conspiratórias e de tratamentos de eficácia jamais comprovada divulgam ideias estapafúrdias, como se tivessem o nível de conhecimento de cientistas brilhantes.

A ciência é uma frágil conquista civilizatória da sociedade, baseada no raciocínio lógico, na observação empírica, na significância estatística, no confronto de dados e na reprodutibilidade dos experimentos, regra segundo a qual a repetição de uma experiência deve levar aos mesmos resultados, independentemente do observador.

Não é tarefa simples convencer sociedades inteiras de conceitos tão abstratos. Veja o caso do uso da hidroxicloroquina no tratamento da infecção pelo atual coronavírus, droga dotada de ação antiviral no tubo de ensaio, já testada sem sucesso contra dengue, gripe, zika, chikungunya e outras viroses.
Para demonstrar atividade de um medicamento contra determinada enfermidade, para a qual não há tratamento conhecido, o estudo deve pertencer à categoria dos ensaios clínicos controlados, randomizados, prospectivos, em duplo cego.

Isso quer dizer, que os participantes precisam ser alocados ao acaso para dois grupos: um deles servirá de controle, outro receberá pela primeira vez a droga em teste. No entanto, como o simples ato de tomar remédio altera a percepção dos sintomas que nos afligem, os pacientes não devem saber para que grupo foram sorteados. Da mesma forma, é preciso evitar que o julgamento do médico seja comprometido.

Para evitar esses vieses, há necessidade de administrar um placebo para o grupo-controle, comprimido inerte (geralmente talco) com aparência idêntica à do que contém a droga em teste, de modo que nem o participante nem o médico possam identificar quem está em cada grupo (duplo cego).

Os participantes serão seguidos até que o número de desfechos clínicos nos dois grupos (cura, piora, mortalidade, sobrevida ou outro) seja suficiente para que os dados nos deem pelo menos 95% de certeza de que são significantes do ponto de vista estatístico.

Como explicar a necessidade de estudos tão detalhados para quem não teve formação científica? É muito mais fácil para os mistificadores contestá-los com base em crenças pessoais, opiniões, dados falsos, interesses políticos ou financeiros. Nem precisam se dar ao trabalho de contra-argumentar, basta pôr os resultados em dúvida: “não é bem assim”, “eu não acredito nisso”.

Médicos criteriosos se baseiam em estudos conduzidos com tanto rigor, porque foi graças a eles que a medicina contribuiu para duplicar a expectativa de vida da população, no decorrer do século 20.

No caso da hidroxicloroquina, nenhum estudo prospectivo, randomizado, controlado, em duplo cego, mostrou que pacientes tiveram qualquer benefício em comparação com os que receberam placebo.

Então, por que há médicos que a receitam? A resposta, prezado leitor, deixo a seu critério.

Drauzio Varella
Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Drauzio Varella fala sobre o caso da menina estuprada em 2009 e perseguida pelos cristãos de Pernambuco

 

Após sofrer aborto, menina de 9 anos passa bem

05/03/2009 

Segundo médicos, ela deve ter alta nesta quinta-feira.
Por decisão do MP, garota permanecerá no Recife, sob proteção.

Do G1, em São Paulo, com informações da Globo News

A menina de 9 anos que teve a gravidez de gêmeos interrompida, no Recife, deve receber alta nesta quinta-feira (5). Na parte da manhã, ela passou por uma avaliação no hospital onde está internada. Segundo os médicos, ela passa bem, está tranquila e deve receber alta na parte da tarde.

Por decisão do Ministério Público de Pernambuco, a criança não retornará para a cidade onde nasceu, no interior do estado. Ela permanecerá no Recife, sob proteção.

Excomunhão

Na quarta-feira (4) o arcebispo de Olinda e Recife, Dom José Cardoso Sobrinho, excomungou da Igreja Católica os médicos e todas as pessoas envolvidas na interrupção da gravidez, por entender que este procedimento é contra as leis de Deus. 

De acordo com o médico Olímpio Moraes, se a gravidez continuasse, a saúde da menina poderia ser seriamente comprometida. “O risco poderia ser até de morte, ou uma sequela definitiva, fazendo com que ela não pudesse mais engravidar”, diz.

No Brasil, a lei permite que o aborto seja realizado em caso de estupro, ou se a mãe corre o risco de morrer. “Ela está incluída nos dois casos. Como médicos, nós não podemos deixar que uma menina de 9 anos seja submetida a este sofrimento, ou até que ela pague com a própria vida”, diz Moraes.

O arcebispo considera que houve crime. “A lei de Deus está acima da lei humana. Quando a lei dos homens é contrária à lei de Deus, esta lei não tem nenhum valor”, diz o arcebispo.

Violência

A gravidez foi descoberta na semana passada, depois que a menina reclamou de dores e foi levada a uma unidade de saúde. Os médicos classificaram a gestação como de alto risco, pela idade e por ser de gêmeos.Segundo os médicos, a mãe pediu para que o aborto fosse realizado.

O padrasto da menina foi preso, suspeito de ter abusado da garota e ser pai dos bebês que ela esperava. De acordo com a polícia, a menina sofria violência sexual desde os 6 anos. O mesmo homem é suspeito de abusar da enteada mais velha, uma adolescente de 14 anos. 

domingo, 16 de agosto de 2020

Tragédia brasileira não tem data para acabar

 





Em que os números da epidemia de agosto nos tranquilizam?
O aguardado pico da curva, que seria seguido de queda abrupta do número de infectados, infelizmente não aconteceu
Todo mundo na rua, na praia, nos bares e botequins e nas lojas, para não falar das festas, cada vez menos clandestinas. A máscara virou adereço pendurado na orelha ou enganchado no queixo, tão inútil quanto o revólver eletrônico para medir a temperatura da testa, na entrada dos shoppings.

Num país desigual como o nosso, sabíamos que não seria fácil chegar aos níveis de distanciamento social de 70% ou mais, atingidos em China, Alemanha, Austrália e outros países que lidaram melhor com a epidemia.

Como seguir a recomendação em habitações precárias, com cinco ou seis pessoas em um ou dois cômodos? Como segurar as crianças dentro de casa nessas condições? O que fazer com a pobreza de famílias em que os recursos para a alimentação duram menos de uma semana?

É claro que era preciso manter os serviços essenciais em funcionamento, mas não levamos em conta o fato de que são prestados por moradores das periferias das cidades, dependentes de trens, ônibus, lotações e metrôs. É um contingente numeroso que trabalha em supermercados, padarias e farmácias, policiais, porteiros de prédios, entregadores, motoristas, lixeiros e muitos outros, além do exército de técnicas de enfermagem, enfermeiras e pessoal de limpeza que arrisca a vida nos hospitais. São tantos em movimento que os transportes coletivos se tornaram o principal ambiente de disseminação do coronavírus nas cidades maiores.

Com as escolas fechadas e a possibilidade de trabalhar pela internet, grande número de famílias que vivem em condições melhores levou o confinamento a sério. Passados cinco meses, no entanto, muitos se cansaram, sentem o peso da ansiedade e dos quadros depressivos causados pela insegurança financeira, pela ausência dos familiares e pela falta de convívio com os amigos.

Neste momento, boa parte da população brasileira decretou por conta própria o fim da epidemia. Não encontro outra explicação para as aglomerações que a televisão mostra nas cidades grandes e pequenas.

Existiria alguma racionalidade nesse comportamento social, prezada leitora? Em que os números da epidemia de agosto nos tranquilizam, comparados com aqueles que nos assustavam tanto, em junho?

O aguardado pico da curva, que seria seguido de queda abrupta do número de infectados, infelizmente não aconteceu. Ao pico, seguiu-se um platô que se estabilizou ao redor de inaceitáveis mil mortes diárias, número macabro que um dia cai, mas no outro sobe. Dois longos meses nesse patamar terrível, sem dar sinais de trégua.

Não conseguimos convencer parte significativa da população de que o vírus é transmitido quando uma pessoa se aproxima da outra, dado científico comprovado desde os primórdios da epidemia.

Conquista civilizatória da cultura ocidental, a ciência nunca foi combatida com tanta ferocidade pelo senso comum e pelo pensamento místico, cegos a qualquer evidência que se contraponha a eles.

A crença em remédios milagrosos que, tomados no início dos sintomas, curariam os doentes, passou a ser defendida por demagogos e até por médicos formados, apesar da ausência de comprovação de eficácia em todos os estudos clínicos já publicados nas revistas de primeira linha.

A crença numa vacina que estaria prestes a nos garantir proteção definitiva ganha cada vez mais espaço na mídia, na argumentação de políticos populistas e no imaginário popular.

A dura realidade, prezado leitor, é que nenhum medicamento demonstrou atividade antiviral, em qualquer fase da doença ou antes de ela se instalar. Mesmo que a vacina venha a proteger todos os que a receberem, não estará disponível em tempo hábil para impedir as mortes que se acumularão até o fim do ano e nos primeiros meses de 2021.

Sem antivirais nem vacinas disponíveis nesta hora, o que nos restaria para evitar tantas mortes? Ouvir o que diz a ciência —cuidar da higiene das mãos, usar máscaras protetoras e guardar distância uns dos outros sempre que sairmos de casa.

Se tomarmos esses cuidados e as autoridades de saúde tiverem bom senso e vontade política para testar o maior número possível de pessoas nas ruas, para identificar rapidamente as que estão infectadas e as que mantiveram contato com elas, ainda será possível reduzir o número de infectados e de mortos.

Caso contrário, na base do liberou geral, a tragédia brasileira persistirá por vários meses.

domingo, 2 de agosto de 2020

As consequências nefastas do ódio



Talvez a consequência mais nefasta do ódio seja o aparecimento do populista
O ódio não admite hesitações, interpretações alternativas ou neutralidades, quem não estiver conosco é contra nós
Ódio é uma emoção duplamente negativa. Quando se expressa, faz mal contra quem se dirige, enquanto envenena aquele que o sente.

Na cadeia, tratei de uma moça que vou chamar de Maria, irmã mais velha de uma menina de 15 anos estuprada e esfaqueada na região genital pelo segurança de uma construção, que fugiu depois do crime. Maria ficou tão revoltada que largou o namorado, os amigos e abandonou o emprego de secretária para se dedicar, em tempo integral, à caça do estuprador.

De manhã, saía da casa dos pais como se fosse para o trabalho e passava o dia pela cidade atrás de qualquer pista que pudesse levá-la a ele. A ideia de matá-lo tomou conta de sua vida de tal forma que nada mais a interessava, nem o convívio com os pais e os sobrinhos de quem era tão próxima. Chegou a dormir na porta de um armazém, à espreita do criminoso.

Finalmente, encontrou-o no café da manhã numa padaria. Seduziu-o com um sorriso. Marcaram encontro para o fim da tarde.

Depois de três cervejas, ela o convidou para o apartamento. Ao atravessarem uma área despovoada, tirou o revólver da mochila, obrigou-o a se ajoelhar, mostrou-lhe a fotografia da irmã e deu o primeiro tiro, deliberadamente contra o abdômen, de modo a apreciar a submissão e o desespero nos olhos do infeliz. Prolongou quanto pôde a agonia do homem suplicante. O tiro de misericórdia veio com um quê de frustração por dar fim ao sofrimento do desafeto.

Foi condenada a 12 anos. Estava presa havia quatro quando a conheci. Apesar de reconhecer os reveses da perda de um bom emprego e do convívio com a família, confessava não estar arrependida: “Se ele reencarnasse, eu faria tudo de novo”.

Odiar é uma doença contagiosa. Você, caríssima leitora, provavelmente sentiu ódio desse homem capaz de estuprar e esfaquear os genitais de uma criança de 15 anos. Fosse você a juíza do caso, talvez não tivesse aplicado a ela pena tão severa ou, quem sabe, considerado a absolvição a sentença mais justa.

A depender das condições, o ódio adquire características de epidemia que se dissemina pela vizinhança, pela cidade, por um país e até por um concerto de nações. Pode ser dirigido contra uma única pessoa, contra um grupo, raça, etnia, habitantes de um país inteiro ou de uma região do planeta.

Assim, os nazistas convenceram os alemães a aceitar como inevitável o extermínio de judeus, ciganos, crianças nascidas com malformações e os que manifestavam desacordo com as políticas oficiais.

É uma emoção aglutinadora: os inimigos de quem odeio estão do meu lado, se nos aliarmos teremos mais força para massacrá-lo. O ódio não admite hesitações, interpretações alternativas ou neutralidades, quem não estiver conosco é contra nós. Não existe espaço para empatia nem para o contraditório, entre os odiadores só há certezas.

Talvez a consequência mais nefasta dessa polarização seja o aparecimento do político populista. Seu talento maior está em identificar numa população as mágoas e as frustrações individuais para transformá-las em ódio, catalisador essencial para unir o povo contra os que serão apontados como responsáveis “por tudo o que está aí”.

O populista necessita da existência de inimigos, como a abelha da flor. Sejam eles imaginários ou personificados. É a lógica do ódio que assegura a submissão dócil dos liderados, esteio da sobrevivência do líder.

O presidente atual soube entender a insatisfação popular e desenterrou o cadáver do comunismo para interpretar o papel de inimigo do povo.

À menor crítica, o cidadão é tachado de comunista e execrado nas redes sociais.

A chegada da epidemia pôs mais lenha nessa fogueira, já que ofereceu a oportunidade de criar outro inimigo: a ciência. Distanciamento social, máscaras, testagem em massa, tudo tem sido contestado com afronta pelo próprio presidente e seus seguidores incondicionais. Medidas de saúde pública adotadas no mundo inteiro passaram a ser consideradas ações propostas por adversários empenhados em destruir a economia, subverter a ordem e matar os brasileiros de fome.

Chegamos ao disparate de politizar a indicação de um medicamento ineficaz no tratamento da doença: quem segue os caprichos do presidente tem que ser favorável à prescrição de cloroquina, ainda que seja tão ignorante em medicina quanto ele.

Drauzio Varella
Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”

domingo, 24 de maio de 2020

Terrível pesadelo


Brasil pode assumir a humilhante liderança mundial em óbitos

No auge da maior crise sanitária do último século, assistimos à negação da realidade pelas autoridades federais
Fui otimista quando ouvi falar da epidemia que se espalhava na região de Wuhan, na China.

Em dezembro do ano passado, as notícias eram de que surgira um novo coronavírus, causador de infecção assintomática ou sintomas gripais de curta duração na maioria das pessoas infectadas. A mortalidade ficaria restrita aos mais velhos: chegaria a 14,8% naqueles com mais de 80 anos. Abaixo dos 40 anos morreriam duas pessoas em cada mil infectadas. Era esse o panorama acessível a quem estava do outro lado do mundo.

Há muito sabemos que os coronavírus são agentes causadores de resfriados comuns. Apenas dois deles estão associados a doenças mais graves, como a Sars e a Mers, epidemias que emergiram na China em 2003, e na Arábia Saudita em 2012, respectivamente, para desaparecer misteriosamente depois de atingir alguns países.

Fui entender a gravidade da Covid-19 nos primeiros dias de fevereiro, quando colegas italianos começaram a enviar vídeos que mostravam o inferno instalado nas unidades de terapia intensiva daquele país.

Cientistas de renome e especialistas em saúde pública se enganaram como eu, entre os quais recipientes do Nobel de Medicina e o doutor Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, o NIAID, dos Estados Unidos, cuja carreira acompanho desde o início da epidemia de Aids.

Na verdade, o mundo não foi capaz de avaliar o perigo que vinha da Ásia. A Europa foi pega de surpresa. Os italianos levaram semanas para entender o que se passava, os britânicos também, os suecos mantiveram a população nas ruas, os espanhóis autorizaram uma passeata para comemorar o Dia Internacional da Mulher, que aglomerou 200 mil pessoas no centro de Madri, justo no dia em que a Itália decretava o isolamento social nas cidades do norte.

Os Estados Unidos —que investem em saúde perto de 20% do maior PIB do mundo— assistiram à chegada do coronavírus em Nova York, com hospitais sem leitos suficientes nem máscaras cirúrgicas para atender à demanda dos profissionais de saúde. Para disfarçar a incompetência em adotar medidas antecipatórias, hoje o presidente americano joga a culpa na Organização Mundial da Saúde.

Aqui, logo que o primeiro brasileiro caiu doente, no último dia de fevereiro, ficou claro que o vírus já andava longe demais para ser contido. A julgar pelo que acontecera em outros países, era esperado que centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro, se tornassem epicentros da epidemia, mas que a doença chegasse ao mesmo tempo a Manaus, Macapá, Fortaleza e Recife, separadas por milhares de quilômetros, foi surpreendente.

Embora pelo menos 80% dos infectados tenham evolução benigna, aqueles com apresentações mais agressivas que exigem internação em leitos hospitalares e UTIs, provocaram um estresse no sistema, que nem o SUS nem os planos de saúde estavam preparados para suportar.

O drama dos hospitais superlotados no Norte do país, Rio de Janeiro, Fortaleza e Recife será repetido em outras capitais e em cidades menores à medida que a epidemia se interioriza. Se o vírus viajou da China para cá em três meses, há alguma razão para ficar aprisionado nas cidades grandes?

Décadas de descaso com a saúde inviabilizaram a agilidade das respostas, para enfrentar o desafio de impedir que o Brasil assuma a humilhante liderança mundial na contagem do número de óbitos, tragédia considerada possível, e até provável, por epidemiologistas respeitados.

No auge da maior crise sanitária dos últimos cem anos, assistimos à inacreditável negação da realidade por parte das autoridades federais, a quem caberia a responsabilidade inalienável de coordenar e dar sentido ao esforço nacional. Inexplicavelmente, o governo se exime até de reconhecer a gravidade do mal que aflige todos, especialmente os que perderam —e ainda perderão— familiares e pessoas queridas.

O Brasil caiu numa armadilha sinistra. Duas trocas de ministros numa fase crucial da disseminação da epidemia mantêm o Ministério da Saúde de mãos atadas há mais de um mês, enquanto o presidente faz o diabo para acabar com o isolamento social e impor um medicamento inútil, com efeitos colaterais eventualmente graves. Por que essa obstinação? Para dar a ilusão de que existe cura para quem contrair a doença nas ruas?

A situação em que estamos, não poderia ser imaginada nem sequer no mais terrível pesadelo.

Drauzio Varella
Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Quando vi pela 1ª vez João de Deus, disse a minha mulher: é bandido


Drauzio Varella
Em pleno século 21, como podem crer em curas mirabolantes e em personagens tão bizarros quanto esse senhor?
Se aprendi alguma coisa em 30 anos frequentando cadeias, foi a reconhecer marginais. Podem disfarçar os modos, o jeito de andar, o palavreado, os gestos, mas o olhar os trai.

Anos atrás, quando vi pela primeira vez na TV o cidadão que se intitulava João de Deus, não hesitei em dizer para minha mulher, ao lado: é bandido.

A televisão tem o dom de entregar os olhos do personagem e, como diz o povo, eles espelham a alma. É por isso que, mesmo sem saber por quê, o espectador percebe quando o entrevistado mente, por mais razoáveis que pareçam os argumentos evocados por ele.
O tal João que apregoava incorporar o espírito de um médico do além-túmulo, que lhe trazia a capacidade de curar enfermos, tinha o olhar em desencontro com a expressão piedosa que a fisionomia se esforçava para transmitir, fugidio, arisco, incapaz de se fixar nos olhos da repórter que o entrevistava.

Nessa época, o homem que eu julgava safado já atraía multidões. Caravanas de crédulos do país inteiro e do exterior viajavam para Abadiânia, no interior de Goiás, em busca das proezas circenses que corriam de boca em boca, reforçadas por reportagens sensacionalistas que exaltavam seus vínculos extraterrenos.

O prestidigitador que dizia curar doenças malignas com passes de mágica, que raspava córneas com o lado cego da lâmina do mesmo bisturi usado nos simulacros de cirurgias, transmitiu por décadas os vírus das hepatites B e C e sabe lá quantas infecções para os incautos, sem que a Vigilância Sanitária se dignasse a molestá-lo.

Acreditaram que suas habilidades mediúnicas se estendiam aos vírus e às bactérias?

No auge da fama, o número de visitantes chegou a 2.000 por dia. A cidadezinha prosperou —tinha 80 pousadas que cobravam diárias de até R$ 200, restaurantes, lanchonetes, lojas que vendiam roupas brancas para os fiéis, imagens religiosas e suvenires bentos pelo santo que me passava a convicção de ser bandido.

Oncologista a vida inteira, vi surgirem vários tipos como esse, curandeiros que apregoavam trazer a saúde de volta aos desenganados, graças à intervenção de entidades extraterrenas que reencarnavam em seus corpos bem aventurados. Com a esperteza para enganar tanta gente por tanto tempo como esse tal João, entretanto, não soube de outro.

Não faço ideia de quantos de meus pacientes caíram nesse engodo. Entendo que não se sentissem à vontade para contar ao médico descrente.

Dos que admitiam ter ido boa parte se dizia decepcionada pela evidência dos interesses comerciais envolvidos no atendimento, enquanto outros se consideravam beneficiados pela paz emanada nas bênçãos e pela névoa de espiritualidade que acreditavam envolver o ambiente.

O argumento de que personalidades estrangeiras, artistas de renome, intelectuais, políticos, juristas e até médicos também consultavam o benzedor travestido de médium ajudou a consolidar a fama e dar credibilidade ao golpista.

Como é inevitável na carreira dos meliantes, no entanto, um dia a casa caiu. O jornalista Pedro Bial entrevistou mulheres que afirmavam ter sido molestadas pelo espertalhão.

A essas delações se juntaram centenas de outras. O ex-emissário de Deus não passava de um homem desprezível que se valia de sua posição para atacar mulheres fragilizadas por tragédias pessoais e dramas familiares.

A credulidade, entretanto, é tão irracional que ainda há quem defenda separar o joio do trigo: de um lado, o homem e as fraquezas da carne, de outro, os poderes transcendentais das entidades que ele garantia encarnar.

Depois de condenado a mais de 50 anos de cadeia por pequena parte de seus crimes, há devotas que teimam em visitar a hoje decadente Abadiânia, na esperança de captar eflúvios energéticos remanescentes nas instalações em que o vigarista as abençoava.

Não me choco com a boa-fé das pessoas simplórias ludibriadas por vigaristas desse tipo, mas com os crédulos que desfrutaram o privilégio de estudar em boas escolas.

Em pleno século 21, como podem crer em milagres, em curas mirabolantes e em personagens tão bizarros quanto esse senhor?

O presidiário João Teixeira, já condenado por uma fração dos estupros cometidos, ainda é tratado pela imprensa como o “médium João de Deus”.

Médium? De Deus? Como assim? De onde vem tanta complacência com os que se aproveitam da religiosidade do povo para explorá-lo em nome de Deus?

Drauzio Varella
Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.