terça-feira, 30 de março de 2021

"Bolsonaro tem que responder criminalmente pelo que tem feito", diz Drauzio Varella


‘Ninguém tem ideia do caos nas UTIs’, diz Drauzio

Para o oncologista, o Sistema Único de Saúde é o maior programa de distribuição de renda do país, porque permite a qualquer pessoa ter acesso a procedimentos de alta complexidade

Por Leila Souza Lim

“Meu sentimento hoje é de revolta”, diz angustiado o médico Drauzio Varella, ao falar do campo arrasado que é a pandemia no Brasil. Depois de ver na última semana o país firmar posição no topo da curva de casos e baixas de vidas por covid-19 no mundo, o oncologista salienta que evitar mortes agora exige esforços que superam a capacidade hospitalar nacional e, no curto prazo, mesmo os de vacinação.

O oncologista frisa que a situação é de caos e não está mais circunscrita à covid-19. “Nossos hospitais entraram em colapso, todos eles, no país inteiro. E esse colapso não atinge só as pessoas com covid, mas também as que têm outras doenças”, afirma.

O médico cita a situação no Hospital das Clínicas de São Paulo, um dos maiores centros médicos do país para cirurgias, destinado a tratamento de casos graves. A média de pedidos de internação ao longo de sete dias até quinta-feira passada, lembra ele, era de 364 por dia, dos quais 110 de pacientes graves não covid e 254 em estágio agudo da doença provocada pelo coronavírus.

Em tom de desabafo, lamenta que muitos ainda só tomem essa consciência quando perdem entes próximos ou tentam em vão vaga em UTIs nas unidades públicas, onde pessoas já experimentam a agonia de despertar da sedação intubadas por falta de anestésicos.

“O controle da pandemia escapou ao alcance dos serviços de saúde. Ninguém tem ideia do caos que são as UTIs hoje. Colegas na linha de frente veem acabar os medicamentos para a intubação. Agora, imagina você acordar com um tubo na garganta, sem entender nada”, relata.

“As pessoas não têm noção do que seja uma Unidade de Terapia Intensiva lotada, as equipes sem tempo, precisando reanimar um paciente, enquanto outro chora com dor”, continua o especialista, para quem a única saída agora é convencer a população de que esse combate está nas mãos de cada cidadão. Segundo Drauzio, nem mesmo o recente reposicionamento do governo em relação às vacinas traria resposta imediata.

Depois de mais de um ano desprezando o trabalho dos laboratórios e medidas sanitárias, o presidente Jair Bolsonaro (Milícia - RJ) se viu sob forte pressão no campo político e prometeu na semana passada o “ano da vacinação dos brasileiros contra a covid-19”. Na visão de Drauzio Varella, contudo, perdeu-se o timing para conter a segunda onda da covid-19 no curto prazo com imunização em massa, e a medida nunca poderia ter sido a principal aposta.

Razão de queixas diárias de técnicos em saúde, a vacinação progride claudicante no Brasil pelo fato de o Executivo federal não ter dado crédito à ciência, enquanto o resto do mundo corria para assegurar doses.

“Vacinação? Esquece, é como se as vacinas não existissem [neste momento, para conter o agravamento da doença]. Pensa comigo, se você pega o vírus hoje numa festa, os primeiros sintomas virão cinco, seis dias depois. Aí você perde o olfato, fica enjoada, sente dor no corpo, a primeira semana vai ser mais ou menos bem para todo mundo. As complicações vão surgindo pelo oitavo, nono, décimo dia. Não se morre de cara... Em grande parte dos casos, a pessoa morre quatro semanas depois de pegar o vírus”, observa o oncologista.

Para ele, a crise sanitária chegou a tal ponto de desgoverno que só uma grande mobilização em torno do isolamento social pode impedir que o país protagonize muito em breve a maior das catástrofes entre as nações atingidas. E para quem ficou assombrado ao ver o Brasil cruzar a barreira de 300 mil registros oficiais de óbitos na semana passada, Drauzio resigna-se por não ter perspectivas mais otimistas.

“Nesse ritmo, é questão de uns 70, 75 dias. Já no fim de maio, chegaremos às 400 mil mortes no Brasil. Como a saúde vai dar conta de uma coisa dessas? Impossível”, diz.

“Se conseguíssemos vacinar todos os brasileiros no fim de semana, o que ia acontecer com a mortalidade? Nada, absolutamente nada, porque o número de mortes conta a história da epidemia do passado. E nós teríamos pelo menos no mês de abril o mesmo número de óbitos, como se não houvéssemos vacinado. Agora, você imagina com essa imunização incipiente, a conta-gotas...”, comenta o médico.

O médico faz sua parte para informar ao máximo sobre a doença e os riscos. Mas argumenta que nem ele nem colegas médicos ou cientistas podem alterar a realidade sem que lideranças do país mudem as mensagens e o curso das políticas de enfrentamento à pandemia adotadas desde março de 2020.

Negacionismo é uma palavra muito leve para caracterizar essas pessoas, isso é fingir que algo não existe. O que fizeram foi tomar atitudes para disseminar a epidemia. Agiram ativamente, comandados pelo presidente da República, que é o maior responsável por tudo o que estamos vendo”, afirma o especialista.

Drauzio diz reconhecer que uma nação com mais de 50 milhões de pessoas empobrecidas e acima de 10 milhões na pobreza extrema não poderia fazer um lockdown de fato. “Então já partimos da situação de um país com tremenda desigualdade social, uma das maiores do mundo, que não ia ter condição de fazer isolamento social como o fizeram países ricos da Europa e Ásia.”

Mas o médico faz questão de reafirmar, porém, que a aceleração dos indicadores de casos e mortes contou com colaboração decisiva do presidente da República. Segundo ressalta ele, Bolsonaro partiu do princípio de que a economia tinha que ser preservada e que as pessoas tinham que trabalhar. Para Drauzio, o mais grave foi que presidente não só tratou o distanciamento social como algo desimportante, mas deu exemplo contrário às medidas de proteção.

“Sim, ele. Ao não usar máscara, ao provocar aglomerações. E tem feito isso ininterruptamente durante toda epidemia, desde o primeiro caso no Brasil, até as 300 mil mortes.” Ao comentar que leu e gostou do manifesto assinado por economistas e banqueiros instando o governo federal a coordenar um plano nacional de combate à pandemia, faz ressalva para dizer que achou a atitude tardia. “Tem um problema de timing, um ano para fazer isso?”, indaga.

“O que paralisa a economia é a epidemia. Cinco montadoras deram férias coletivas para seus funcionários. Por que fazem isso? Porque temos uma epidemia descontrolada, e elas não têm condições de dar segurança aos funcionários no trabalho.”

É impossível não notar, em mais de 40 minutos de conversa, que o médico que sempre defendeu qualidade de vida, os mais pobres e o acesso universal à saúde não pronuncia uma só vez o nome do presidente. E preocupado por demonstrar irritação, o oncologista faz mais de uma pausa para pedir desculpas pela contrariedade com o descaso.

Ele faz alusão ainda à fala do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que afirmou que estava “apertando o sinal amarelo”, citando “erros primários, desnecessários e inúteis” de governos, embora sem especificar diretamente a quem se referia. “Agora? Foi necessário morrerem 300 mil pessoas para eles apertarem o botão amarelo? Então estava verde?”, questiona Drauzio.

Se fosse consultado sobre o que o governo deveria fazer de imediato, o médico diz que recomendaria ao presidente Bolsonaro que primeiramente pedisse desculpas por seus erros. “Ele deveria aparecer diante da nação e pedir desculpas, dizer que estava completamente errado, e que é preciso fazer distanciamento social, coisa que ele não vai fazer. E esquecer essa bobagem de tratamento precoce.” Quase ao fim da entrevista, porém, o oncologista e escritor endurece a opinião sobre o chefe de Estado: “Eu não queria falar com o presidente, não. Porque dizer a ele para pedir desculpas é muito pouco. Acho que ele tem que responder criminalmente pelo o que tem feito. Você não pode causar uma hecatombe, uma catástrofe dessa num país, e depois dizer: ‘olha, me desculpe, eu me enganei’”.

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