sábado, 27 de março de 2021

Se a estupidez é contagiosa, a inteligência também é



A nossa esperança está naqueles que insistem em denunciar o óbvio
Em Angola, nos anos que se seguiram à independência, a Prisão de São Paulo, a maior do país, juntava presos de delito comum, jovens ligados a diferentes partidos e movimentos, quer de esquerda, quer de direita, militares do exército sul-africano e zairense, capturados em combate, e ainda um pequeno número de mercenários ingleses e norte-americanos.

Os jovens esquerdistas, que vinham quase todos de famílias da pequena burguesia urbana, e eram, na sua maioria, estudantes universitários, tentaram organizar cursos de línguas e de cultura geral. Também organizavam bailes. Começaram por improvisar orquestras com instrumentos imaginários. Os músicos levavam o desafio muito a sério. Ficavam num pequeno palco, imaginando que tinham nas mãos guitarras, flautas, trombones, enquanto imitavam o som dos respetivos instrumentos.

A partir de certa altura, os presos criaram um canal de televisão. Obviamente, sem televisão. Os âncoras sentavam-se atrás de uma estrutura de madeira, a imitar uma tela, e liam notícias totalmente inventadas. Um antigo coronel do exército português, Teles Grilo, acusado de ter dirigido um massacre terrível contra camponeses, em janeiro de 1961, na Baixa de Cassange, manteve durante alguns meses um programa de música clássica que era escutado, atentamente, pelos restantes presos. A esmagadora maioria nunca havia visto ou sequer escutado um piano. Contudo, os que sobreviveram às torturas e fuzilamentos saíram da Prisão de São Paulo especialistas em música clássica.

Ver aqueles jovens, num pequeno palco, tocando instrumentos imaginários deve ter parecido aos carcereiros uma expressão de loucura. Parece-me, pelo contrário, um exemplo de lúcida insurreição perante o domínio do absurdo. Mergulhados num ambiente de crueldade extrema, de perversão, de humilhação, de inversão de valores, sós e desamparados, aqueles jovens construíram uma estratégia de resistência, recriando um universo ficcional de alguma normalidade.

É isso, afinal, o que a arte faz. Em contextos de desumanização, a arte reafirma a humanidade. A encenação de realidades alternativas é também, muitas vezes, a melhor forma de expor e denunciar as falhas na matriz, ou seja, os absurdos que se vão alojando no real, de forma mais ou menos sólida, mais ou menos bem-sucedida.

Quando os loucos se instalam no poder, o simples bom senso se torna subversivo. O sujeito que grita “o rei está nu”, diante do déspota que marcha pelado, tem mais chances de ser perseguido como um terrorista radical pelos seguidores do rei do que de os persuadir. Ainda assim, é necessário gritar. É imperioso continuar gritando. A nossa esperança está naqueles que insistem em denunciar o óbvio. Em todos os que, segurando instrumentos imaginários, vão compondo as canções reais com que acordaremos os adormecidos.

Penso muito naquela orquestra imaginária, e nas suas canções urgentes.

Vale sempre a pena relembrar que, se o absurdo é contagioso, a lucidez também; se o medo é contagioso, a coragem também; se a estupidez é contagiosa, a inteligência também.

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