quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

E se a reforma da Previdência for aprovada e der certo?


A Previdência e o mito da externalidade
Como garantir benefícios capazes de sustentar uma vida digna, e não só o azul da planilha?
Sérgio Martins

Uma constante em matérias e entrevistas favoráveis à reforma da Previdência é a inexistência de considerações sérias sobre os impactos sociais de uma reforma “bem-sucedida”. São frequentes, ao contrário, previsões apocalípticas sobre cenários de fracasso ou mesmo aprovação de uma versão “tímida” da reforma. É o caso, então, de perguntar: será que uma reforma nos moldes propostos de fato não terá maiores custos sociais, ou será que, por alguma razão, estes custos é que não estão sendo devidamente contabilizados?

É um lugar-comum defender que um dos principais fatores a exigir a reforma é o aumento da expectativa de vida da população. Parece óbvio: como esperar que a Previdência se sustente com menos trabalhadores na ativa e um número maior de beneficiários recebendo por mais tempo? Todos parecem concordar que o progressivo envelhecimento da população é um fato a ser encarado, mas a verdade é que o debate vigente encara esse fato como se ele fosse meramente contábil, ou seja, como se se tratasse de nada mais que um número vermelho numa planilha que deve necessariamente resultar em soma zero. Assim, por exemplo, não é levada em consideração a perspectiva de termos uma massa idosa severamente empobrecida no Brasil. É como se o aumento da expectativa de vida não trouxesse impactos também às casas e ruas, como se esses problemas não dissessem respeito a uma planilha que deve olhar apenas para a conta corrente do sistema previdenciário e nem um centímetro para o lado.

Ora, como esse "custo" não é internalizado, também não é devidamente internalizado, por exemplo, o custo da opção política por um modelo que privilegia planos de saúde pagos e massificados em detrimento do SUS. Arma-se assim a bomba: o que será dessa massa que chegará à velhice com aposentadorias reduzidas pelo fator previdenciário e custos de vida ainda mais altos que os atuais? O que faremos quando essa bomba estourar? Fingiremos não ver as condições de vida de um contingente expressivo da população? Seguiremos tratando-as como uma externalidade que não diz respeito à política econômica? Lavaremos as mãos, argumentando que milhões de lamentáveis problemas individuais não perfazem um problema social? Vamos repreendê-los por não terem poupado para a velhice, isso num país em que só uma irrisória minoria de trabalhadores ganha o suficiente para economizar? Em alguns lugares do mundo, o drama já deu as caras. No Chile, alardeada como modelo para a reforma brasileira, cerca de 90% dos aposentados recebem bem menos que o salário mínimo. Já no Japão, milhares de idosos vêm cometendo crimes com o objetivo expresso de ir para a cadeia e lá, finalmente, ter moradia, saúde e alimentação garantidas pelo Estado. Dado o estado catastrófico do sistema penal brasileiro, sequer essa opção nossos aposentados terão.

A intenção aqui não é recusar o debate sobre a reforma da Previdência; pelo contrário, é levar esse debate para além das planilhas do sistema previdenciário. Para isso, todas as questões devem poder ser encaradas de frente: como garantir benefícios capazes de sustentar uma vida digna, e não só o azul da planilha? Se isso for impossível num sistema autossustentável, como financiá-lo? Mais: será que basta uma Previdência voltada para o trabalhador, ou será preciso pensar numa modalidade mais próxima à da renda básica universal? Isso sem nem entrar no mérito da natureza redistributiva da Previdência, que poderia se tornar mais virtuosa com uma reforma preocupada em pensa-la primeiramente sob essa ótica.

Um debate honesto exige que perguntas como essas também possam ser feitas. Hoje em dia, no entanto, qualquer ressalva à rigidez das planilhas tende a ganhar a pecha de irresponsabilidade ou infantilidade. Como se irresponsável não fosse justamente tapar o sol com a peneira, jogando tudo o que enfraquece sua posição num debate no balaio das externalidades a serem convenientemente ignoradas. Ninguém é obrigado a debater com neutralidade, ou a recalcar seu próprio ceticismo acerca dessa ou daquela posição. Mas simplesmente varrer para baixo do tapete das externalidades dados e fatos que porventura nos sejam inconvenientes é puro e simples irrealismo, até porque não há tapete capaz de encobrir o destino de milhões de vidas concretas.

Sérgio Martins é professor do Departamento de História da PUC-Rio

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