Valor Econômico - Carlos Primo Braga
O ano começou com um choque geopolítico. O assassinato de Qasem Soleimani, líder das Forças Quds do Irã, contribuiu para aumentar a incerteza econômica. Essa incerteza pode afetar decisões de investimento e de consumo ao redor do mundo. O consenso antes desse choque era de que 2020 seria um ano de recuperação após a desaceleração observada em 2019. Um crescimento na faixa de 3,2 a 3,4%, em contraste com os 3% de 2019, era considerada uma aposta de baixo risco. O cenário global refletia expectativas relativamente positivas com relação ao desempenho das principais economias do mundo.
Nos EUA, o mercado de trabalho continua aquecido e a confiança dos consumidores permanece estável. Os analistas apostam que o banco central não implementará uma política monetária restritiva em 2020, evitando novos aumentos da taxa de juros e continuando a apoiar a expansão do crédito. A trégua no conflito comercial com a China, por sua vez, poderá revigorar a demanda por bens de capital e o comércio internacional, embora não elimine a tensão bilateral. E muito embora turbulências associadas com a eleição presidencial possam afetar os mercados financeiros, a previsão é que a economia crescerá por volta de 2% em 2020.
É verdade que o mercado de energia na atualidade é bem menos dependente dos produtores do Oriente Médio e a vulnerabilidade da economia dos EUA a esse tipo de choque é menor do que no passado. Mesmo assim, esse é um risco que não pode ser ignorado
A economia chinesa deve crescer menos de 6% pela primeira vez desde 1990, mas Pequim está adotando políticas expansionistas tanto no âmbito monetário (com a redução do nível exigido de reservas bancárias), quanto no campo fiscal (redução de tributos e um déficit fiscal significativo, que atingiu 5,3% do PIB em 2019). Nesse contexto, a desaceleração econômica deve ser limitada, muito embora uma crise financeira (o crédito doméstico ultrapassou 260% do PIB em 2019) ou a falência do modelo de “um país, dois sistemas” em virtude da crise política em Hong Kong sejam riscos reais.
Na Europa, a decisão política no Reino Unido de sacramentar o “divórcio” com a União Europeia diminuiu a incerteza de curto prazo, embora seja uma ilusão acreditar que os detalhes da separação estarão plenamente definidos até o final de 2020. A contração das exportações alemãs, o tumulto político na França, a desaceleração da economia russa e a crise do setor financeiro na Itália não permitem grande otimismo, mas o perigo de uma recessão continental é pequeno.
A recuperação econômica de algumas economias emergentes, inclusive Brasil e Índia, complementa o quadro global. Surpresas podem ocorrer como ilustrado pela experiência do Chile onde manifestações populares resultaram em dezenas de mortes e perdas econômicas significativas em 2019. O progresso chileno vinha ocorrendo em meio a uma crescente polarização política. E muito embora a desigualdade econômica estivesse em queda (o coeficiente de Gini caiu de 57,2 em 1990 para 46,6 em 2017), a percepção de desigualdade era alimentada pelo enriquecimento estratosférico no topo da pirâmide social. O Chile é o país com o maior número de bilionários per capita na América Latina. Além disso, a frustração com os resultados da privatização dos sistemas previdenciário e educacional contribuiu para a radicalização de parcelas da sociedade. A experiência chilena mostra que o crescimento não é suficiente para evitar conflitos em um ambiente de polarização política e social.
A crise no Oriente Médio, no entanto, é o maior risco para a economia global. A resposta inicial de Teerã ao assassinato de Soleimani foi calculada para evitar um confronto mais amplo. A reação dos EUA ao ataque de mísseis iranianos, por sua vez, enfatizou o endurecimento de sanções econômicas contra o Irã. Os dois países adotaram uma política de tit-for-tat combinando ações militares e econômicas, evitando um confronto mais direto. Mas o Irã também anunciou que não mais obedecerá aos limites do acordo nuclear negociado com vários países em 2015, que foi unilateralmente denunciado pelos EUA em 2018. Essa decisão tem um potencial explosivo no médio prazo.
A estratégia americana de ênfase em sanções econômicas tem um precedente “ilustre”. Em 1940-41, sanções econômicas foram adotadas pelos EUA contra o Japão. Ao invés de limitar o expansionismo japonês, as sanções levaram o Japão a optar por um ataque inesperado e devastador a Pearl Harbor em 1941. O paralelo histórico tem os seus limites já que a capacidade militar iraniana não permite um confronto convencional com os EUA. Mas diante de uma economia em desintegração (o FMI estima uma contração de 9,5% do PIB iraniano em 2020), os setores mais radicais do Irã poderão optar por uma escalada futura nos confrontos através de proxies no Iraque, Líbano, Síria e Iêmen.
Tal estratégia poderá incluir ataques à Arábia Saudita e ao Iraque, ou à navegação no Estreito de Ormuz, impactando o preço do petróleo. A história recente mostra que os efeitos econômicos mais significativos de choques geopolíticos ocorrem quando os mesmos afetam o preço do petróleo. É bem verdade que o mercado de energia na atualidade é bem menos dependente dos produtores do Oriente Médio e a vulnerabilidade da economia dos EUA a esse tipo de choque é menor do que no passado. Mesmo assim, esse é um risco que não pode ser ignorado.
A atual incerteza geopolítica traz à memória a história do professor de estatística que durante os ataques nazistas a Moscou não se refugiava em abrigos de ataque aéreo. A sua lógica era de que Moscou tinha 7 milhões de habitantes e a probabilidade de ser atingido era insignificante. Um dia, para a surpresa de seus colegas, ele procurou um abrigo. Quando indagado por que havia mudado de opinião, ele disse: “Moscou tem 7 milhões de habitantes e um elefante. Ontem os nazistas mataram o elefante”. Resta esperar que os eventos de janeiro não sejam interpretados como o “elefante” que alterará de forma significativa as expectativas dos mercados para 2020. Efeitos colaterais, como ilustrado pela tragédia do avião ucraniano, já são uma realidade.
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