segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Bum Bum Tam Tam é mais complexo que Bach



Nem bem eu me converti ao elitismo adorniano - por ter criticado o BBB - e o algoritmo me apresenta reportagem afiançando que “Bum Bum Tam Tam é mais complexo que Bach".

Na verdade, longe de ser um adorniano, estou convencido de que é impossível alcançar qualquer critério autônomo de valoração estética, desconectado dos circuitos de hierarquização social. Em suma, que é impossível provar que Bach é melhor que MC Fióti.

O que há é a associação entre posse de capital cultural e consumo de obras reconhecidas como legítimas. E as camadas de interpretação que vão concedendo complexidade cada vez maior a estas obras. Um mélange de Bourdieu e Eco, como se vê.

Isso não significa abrir mão da apreciação estética, apenas negar-lhe um caráter transcendente e abrir as portas para uma análise sociológica.

Mas também não significa comprar alegremente os produtos da indústria cultural e vetar a discussão sobre seus efeitos sociais e políticos.

Muito menos aponta para a mera inversão lacradora: já que não tenho como provar que Bach é superior a MC Fióti, vou provar o contrário.

São três argumentos principais que sustentam a pretensa superioridade de "Bum Bum Tan Tan" sobre o barroco alemão:

(1) Um trecho da Partita para flauta em lá menor, BWV 1013, é sampleada no funk. Não vejo a importância disso. Já citei versos de Shakespeare nos meus textos: sou mais complexo que o bardo?
Espantoso mesmo seria se algum musicologista descobrisse que Bach sampleou Fióti em suas composições. O inverso, francamente, não impressiona.

(2) "Há muitos timbres ali que quando você vai passar para a partitura, é muito difícil. É mais difícil que colocar uma música do Bach na partitura, por exemplo".

Também é difícil passar para a partitura os guinchados de Jair Bolsonaro com Ernesto Araújo do lado uivando "mito, mito". Não sei se isso os qualifica como grande música.

A cadeia de equivalências é toda furada. A complexidade da composição nem equivale à complexidade da notação, por um lado, nem é critério de qualidade, por outro.

(3) O mais importante: tecnologia. "O segredo é: música clássica, música de concerto, é de um tempo que você não tinha nem eletricidade. [...] Toda produção eletrônica já é por natureza muito mais complexa. Para você chegar nesse nível de produção que envolve os fluxos e as festas, você precisa ter muitos anos de tecnologia".

Uma vez que "eletricidade" é um fenômeno natural, tenho certeza de que já existia no tempo de Bach. Mas não vou pegar no pé de ninguém por causa disso. O ponto é que, mais uma vez, o raciocínio se apoia numa equivalência espúria.

Dados os meios disponíveis em sua época, Bach não poderia produzir os mesmos sons que MC Fióti. Isso não diz absolutamente nada sobre a complexidade de suas composições. Posso colocar um sintetizador de última geração na frente de um sagui - e daí?

Ou, então: novamente sou superior a Shakespeare. Afinal, eu escrevo usando um possante processor de texto do sr. Gates, enquanto ele escrevia à mão, com pena de ganso.

São argumentos bobos, voltados a causar, não a debater, e que, sob o pretexto de combater o preconceito contra o funk, reforçam o preconceito, ainda maior, contra a música erudita, apresentada como coisa velha, ultrapassada.

É sintomático, aliás, que o pesquisador fale de "música de concerto é de um tempo" etc. - como se ela não fosse também do tempo hoje, como se não continuasse a ser composta e executada, inclusive, muito dela, com um uso exuberante das novas possibilidades tecnológicas abertas pela "eletricidade".

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