sábado, 6 de fevereiro de 2021

Daqui a um século, talvez os vindouros olhem para nós com o mesmo horror

José Eduardo Agualusa

Um exercício útil nos momentos amargos e sempre que cairmos na tentação de julgar personalidades de épocas passadas segundo valores do presente

Imaginemos que em 1696, poucos meses antes de morrer, o poeta Gregório de Matos tivesse publicado um romance de antecipação política, cuja ação decorresse no início do século XXI. Nesse livro, Matos imaginaria um mundo no qual a escravatura tivesse sido completamente abolida. A compra e venda de pessoas seria ilegal em todos os países. Os habitantes desse tempo futuro olhariam com intenso horror para o passado, aquele distante século XVII, no qual por toda a parte se comerciava gente.

Como é que um livro assim teria sido acolhido pela sociedade da época?

Provavelmente com troça. Eventualmente com susto e incompreensão. Alguns olhariam Gregório com desdém, como se olham os muito ingênuos e os sonhadores ociosos. O poder político acusaria o poeta de pretender subverter a ordem estabelecida. A Santa Inquisição iria acusá-lo de heresia ao sugerir imperfeições morais na Bíblia e nos ensinamentos do senhor Jesus Cristo, que recomendava aos senhores tratar os escravos com respeito e dignidade, mas em nenhum momento foi capaz de compreender que o tal respeito e dignidade só se alcançariam com a abolição completa do sistema escravocrata.

Um exercício como este pode ser útil nos momentos amargos, quando, face a uma nova atrocidade, tendemos a duvidar da evolução moral da sociedade no seu conjunto. Vale também sempre que nos deixamos cair na tentação de julgar personalidades de épocas passadas segundo os valores do presente. É fácil esquecer que o passado já foi futuro. Pensando bem: todo futuro tem mau passado.

São inúmeros os romances de ficção científica que foram capazes de prever avanços tecnológicos, das viagens à Lua à invenção dos robôs, passando pela criação de centrais de energia solar e até de algo semelhante à internet. Já os romances de antecipação política, como “1984”, de George Orwell, ou “Submissão”, do francês Michel Houellebecq, são muito mais raros. Ou então falham de tal forma nas suas previsões que depressa os esquecemos (é o que irá acontecer com “Submissão”).

Daqui a um século, talvez os vindouros olhem para nós com o mesmo horror com que hoje encaramos Gregório de Matos e os seus contemporâneos. Talvez se perguntem, por exemplo, como foi possível a existência de sociedades nas quais era legal criar animais para os assassinar e devorar. Haverá então movimentos apelando a que ninguém mais leia os meus livros porque eu não só fui um carnívoro feroz, como, em vários romances, elogiei pratos de carne — a feijoada, a rabada, ou a muamba de galinha do meu país natal (Angola). Deste nosso tempo só se salvarão das altas chamas do inferno meia dúzia de escritores, com destaque para o sul-africano J. M. Coetzee e o americano Benjamin Safran Foer, veganos militantes e, por sinal, dois dos meus autores favoritos.

Ou não será nada assim. Não sei. Pelo sim, pelo não, estou tentando abandonar a carne. Embora lentamente. Um pouco como Santo Agostinho relativamente ao sexo: “Senhor, dai-me a castidade, mas não agora.”

Concluindo: é muitíssimo mais fácil prever os progressos da tecnologia do que a evolução do coração dos homens.

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