Luiz Gonzaga Belluzzo
As forças subterrâneas do inconsciente coletivo movem manifestações de insanidade gregária travestidas de ações da sociedade civil
Uma das marcas registradas do pensamento conservador, o novo e o velho, é a convicção da bondade natural do indivíduo criado na família. Só a família torna o indivíduo capaz de discernir entre o justo e o injusto, o certo e o errado. A sociedade e as instituições, pelo contrário, são corruptas e corruptoras.
Não são outros os fundamentos da ideologia da direita brasileira. Atolada no neopentecostalismo, esse aglomerado está convencido da excepcionalidade de suas virtudes. Para essa turma, os compromissos típicos da democracia são obstáculos para a realização da “verdadeira justiça”, aquela que, desde a concepção, Deus gravou no coração dos homens. Deus acima de tudo!!!
As instituições da sociedade, sobretudo o Estado, com suas instâncias de controle, suas leis ambíguas e seus métodos de punição insuficientemente rigorosos, vão transformando a Justiça numa farsa, num procedimento burocrático e ineficaz. Não por acaso, são tão bem esculpidas nos corações e nas mentes dos homens bons as figuras do policial e do magistrado justiceiro, aquele destemido que se desembaraça das limitações dessas instituições corruptas e corruptoras para se dedicar à limpeza do país. A sociedade está suja, contaminada pelo vírus da tolerância. Só o herói solitário pode salvá-la, consultando sua consciência, recuperando, portanto, a força da moral “natural”, aquela que Deus infunde no coração de cada homem.
Peter Gay, um dos biógrafos de Freud, incita os pensadores da sociedade a considerar as relações entre biografia individual e cultura na sociedade de massas: “Os estudiosos da sociedade, sem excluir os escritores imaginativos, têm certamente sabido há bastante tempo que, em grupos, os indivíduos podem retornar a estados primitivos da mente, sujeitar a sua vontade a líderes, desconsiderar restrições e o ceticismo sensível que a educação cultivou neles tão dolorosamente”.
Nos últimos anos, os “homens bons” não se cansaram de disseminar, em seus tuítes e congêneres, as consignas que moveram os batedores de panelas: “bandido bom, é bandido morto” ou “direitos humanos, só para os humanos direitos”.
As forças subterrâneas do inconsciente coletivo movem campanhas de opinião que apelam para medidas extremas. São manifestações de insanidade gregária, travestidas de ações da sociedade civil, em cujos becos e desvãos escuros, aliás, se acumula a energia que alimenta a onda de violência que atinge a todos.
Nas manifestações dos moralistas transcendentais, vejo a autoconvocação dos soi-disant iluminados para substituir a onisciência divina e, nessa condição, desferir sentenças irrecorríveis, como as desferidas pelos juízes do Juízo Final, em contraposição aos humanos, os pobres-diabos que se debatem para sobreviver aos ditames da falibilidade e da incerteza.
Esses processos identitários de trágico desfecho no mundo dito civilizado reaparecem no Brasil etiquetados com as marcas da conhecida matreirice nativa. A matreirice circula livremente nas veias dos brazucas abonados, remediados e outros nem tanto.
Pois, o deputado estadual e senador eleito Flávio Bolsonaro não trepidou em celebrar os bons e justos que ainda sobrevivem e resistem em nossa sociedade corrupta. Informa a imprensa degenerada que Flávio propôs uma menção de louvor e congratulações ao então capitão da Polícia Militar Ronald Paulo Alves Pereira “pelos importantes serviços prestados ao Estado do Rio de Janeiro” em 2004. Hoje major, Ronald Paulo Alves Pereira foi preso, na manhã da terça 22, na operação “Os Intocáveis”, acusado de ser um dos líderes de uma milícia na capital carioca.
Não bastasse o gesto de reverência a um policial envolvido com criminosos que deveria combater, Flávio Bolsonaro invadiu o perigoso terreno da promiscuidade ao contratar a mãe e a mulher de outro miliciano, Adriano Magalhães da Nóbrega, para prestar serviços em seu gabinete. O senador Bolsonaro descarregou às costas do assessor Queiroz a responsabilidade pela contratação das senhoras Nóbrega. “A curpa é do ténico”, já acusava o sambista da pauliceia, Adoniran Barbosa, em uma de suas ironias de saudosas malocas.
Fossem vivos, Stanislaw Ponte Preta ou Millôr Fernandes não perderiam vaza para reinterpretar os lemas dos paneleiros. Não tenho a presunção de mimetizar o talento dos dois humoristas geniais, mas imagino que poderiam sugerir a substituição de “bandido bom é bandido morto” por “bandido bom é bandido nosso”. Os fatos imputados permitem suspeitas, mas suspeitas exigem comprovação. Há quem possa temer a repetição de convicções apoiadas em exibições de PowerPoint.
Para escapar às trevas que infestam as crenças e convicções dos Dallagnóis da morte, peço asilo na vida de minhas suspeitas laicas. Elas insistem em repetir: a sociabilidade moderna move-se entre a inevitável pertinência a uma cultura produzida pela história e a pluralidade dos indivíduos “livres”. A história dessas sociedades “produziu” o mercado, a sociedade civil, suas liberdades, seus interesses e seus direitos.
Essa forma de sociabilidade rejeita a autoridade da “ordem revelada” ou transcendências, religiosas, políticas (pseudorrevolucionárias), moralistas e midiáticas. Tais monstruosidades pretendem colocar-se “fora” da bulha e das misérias do mundo da vida e do penoso exercício de compartilhar a razão com os demais cidadãos livres e iguais em sua diversidade. Na sociedade contemporânea, não há lugar para tribunais privados e julgamentos autorreferidos do comportamento alheio, senão nas trágicas experiências do totalitarismo.
Nesse abismo sem fundo, germina a hostilidade em relação ao “outro”. É preciso inventar uma conspiração, um inimigo: o imigrante, o estrangeiro, o comunista. A tarefa dos santificados e abençoados é eliminar a diferença sob qualquer forma. Nas profundezas da crise, é necessário expurgar todas as diferenças e mergulhar nos falsos confortos do que é absolutamente semelhante, a totalidade uterina e intolerante da massa informe e manipulável.
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