domingo, 24 de março de 2019

Ideologia e masculinidade tóxica



Ideologia é uma palavra da moda nas redes sociais, mas sempre de forma parcial (e acho que nem poderia ser diferente, por definição). Ao contrário do que as polarizações fazem pensar, a ideologia não é clara, dada, facilmente identificável.

A ideologia vive e cresce e se espalha na sombra da palavra. A ideologia está nas entrelinhas, no discurso subjacente, não dito de forma direta. A ideologia é irmã do recalque. Não é sinônimo de "visão de mundo ou de homem".

Se tiver algum filósofo aí para me ajudar, parto do princípio de que a ideologia não é uma weltanschauung (escrevi certo?). Nossa "cosmovisão" se constrói sobre uma base ideológica que se sustenta abaixo e fora do discurso, e que só pode sobreviver assim.

Para que uma dinâmica ideologicamente sustentada se mantenha é preciso calar ou desviar a atenção daquilo que realmente é o núcleo de um discurso.

Inspirado pelo último @Mamilospod, vamos pensar nos provavelmente mais frequentes massacres como o de Suzano. Eles nos mobilizam e espantam porque atravessam nossas estruturas pré estabelecidas. É como se a sociedade levasse uma flechada do Real.

(Real aqui sendo o da psicanálise, aquilo que é mas que não consegue ser apreendido ou definido, algo que mobiliza e governa, mas está fora da linguagem)

Mas não é o Real, pelo contrário: há uma estrutura imaginária, rígida e direta, que ordena o mundo percebido dos discursos, justificando, retroalimentando e ESCONDENDO ideologias. Ex: menino veste azul, menina veste rosa.

Quem trabalha por uma simplificação naturalizada do mundo trabalha para manter uma estrutura discursiva que mantém e sustenta uma dinâmica ideológica da qual não se deve falar.

E aí, quando essa estrutura "quebra" (ocorre um massacre, por ex), é preciso correr para remendar o discurso, tapar o buraco, recalcar. Primeiro, encontrar um bode expiatório no mundo da cultura: quadrinhos, música (rock, funk), jogos?

(Produtos da indústria cultural são manifestações de um sintoma social, sem dúvida, mas não causa. É como tentar culpar a febre pela infecção)

Segundo, se o remendo não funciona, tentam com mais força: "a culpa pela violência é de quem está denunciando a violência". É o C.Q.D. que o idiota útil nos fornece.

Mas qual a dinâmica de fato, ideológica, simbólica (sustentada no imaginário, mas simbólica), nas entrelinhas do ato violento, do massacre? Pergunta: qual a % de meninas agressoras nesses casos?

A estatística nos dá uma pista, ela aponta para a construção do "masculino", para o que é um ideal de Homem. Quando falo de um homem ideal, o que aparece como discurso adjacente é "potência e poder".

Parece uma formulação frágil e é frágil mesmo. O Homem tem um destino manifesto, uma jornada do herói que se inicia com seu nascimento. O Homem pode ser tudo menos "medíocre". Ele terá a mocinha (o desejo da mocinha, mesmo que em potência não realizada) e será admirado pelos seus.

Se há algo que quebra essa formulação de masculino... É o feminino. A mulher, no limite de sua constituição íntima, não participa deste arranjo. O masculino é o 3-5-2 de prancheta que levará à vitória com certeza, mas que esquecemos de combinar com o outro time.

O machismo e a misoginia são afirmação e reafirmação violenta do "poder" citado acima diante da "liberdade de ser" que o feminino representa. Toda a tentativa de definir mulher é tentativa de calar mulher.

CALAR. Num mundo em transformação, em que os antigos papéis não servem mais e são contestados, toda diversidade de vidas, experiências e desejos é ameaça a uma dinâmica ideológica que em fantasia sempre "funcionou'. Esse diverso precisa ser calado para que se reviva o não dito.

Aí o jovem que teme o mundo e está ressentido pelo outro que o impede de cumprir seu destino manifesto de grandeza apenas por existir e por desejar encontra grupos que o dão pertencimento e confirmação ao seu discurso de vítima.

Grupos que reverberam suas histórias de como mulheres agiram como "vadias" ou de como gays "só querem privilégios" e de como nossas armas vão concertar tudo a partir da concretude fálica que projetamos nelas. Não tem como dar certo.

Pior, se "faço justiça" num massacre serei herói entre os meus, finalmente. Para um atirador desses, o crime é uma forma de escrever seu nome na história, de escapar da "mediocridade" de apenas ser.

A internet dá lugar a esses grupos e facilita tudo, mas não é a internet. A cultura nerd gamer pode servir de catalizador ou caldo de cultura para esses grupos, mas não é a cultura gamer. Nosso problema antecede todos esses aspectos.

Nosso problema está ideologicamente entranhado na cultura ocidental e capitalista, e é o ideal de masculinidade. É ele que precisa cair.

Esse apego a um poder imaginário do qual nenhum homem escapa totalmente está no centro do problema.

Eu brinco que a análise do homem neurótico só começa quando sua masculinidade quebra. O trabalho do analista é martelar, questionar esse ídolo-falo violento mas com pés de barro.

Funciona. O próprio paciente chega ao questionamento: "mas espera, eu tenho todo esse ódio de mulher mas me dou conta agora que nem conheço mulheres, que nunca ouvi uma mulher".

O problema é que não dá para botar todo homem do mundo em análise (e nem sabemos o quanto funcionaria para cada um), então precisamos, enquanto sociedade, enfrentar a questão de frente, repensar discursos e lugares, relações, e bem nomear o problema, a ideologia. Já é um começo.

Porque a ideologia é uma arapuca, e a masculinidade tóxica é uma cama sempre pronta esperando o homem neurótico deitar. Nem toda a análise do mundo livra um homem de agir segundo este signo, eu incluso.

Mas ao falar disso e botar a coisa as claras é possível estar mais vigilante e nos questionarmos mutuamente.

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