"Os militares de hoje não têm maior compromisso com a democracia do que os de 1964 - talvez menos, já que naquela época havia uma ala legalista que logo foi extirpada. Se algo mudou em sua doutrina, foi a aceitação cada vez maior do império do mercado e o abandono da visão nacionalista"Uma célebre pílula de sabedoria diz que é melhor ver o copo meio cheio do que vê-lo meio vazio. Eu não concordo. Acho que o ideal é avaliar de forma realista quão cheio ou vazio o copo está e superar essa dicotomia simplista em que "cheio" e "vazio" são as duas opções, ignorando as múltiplas gradações intermediárias.
Na ordem do dia assinada pelos chefes militares, relativa ao aniversário do golpe de 1964, há quem esteja focando no trecho que fala de "transição para a democracia". Se falam em transição para a democracia, então reconhecem que antes havia ditadura. Logo, estão reconhecendo que o regime de 1964 era ruim. Logo, estão repudiando o golpe. Epa, o copo está quase cheio!
Um olhar um pouquinho mais detido sobre a ordem do dia nos diz outra coisa. Ela é vazada na retórica antiquada que é própria deste tipo de documento, pelo menos entre os militares brasileiros, com longos circunlóquios desnecessários. Mas já no quinto parágrafo há a caracterização do comunismo como o equivalente do nazifascismo: "ideologias totalitárias, em ambos os extremos do espectro ideológico", "faces de uma mesma moeda", "ameaças à liberdade e à democracia".
Mais do que um erro histórico grosseiro, há aqui a adesão a uma perspectiva interessada, que associa as lutas emancipatórias da classe trabalhadora ao espantalho do "totalitarismo". Ao impor um veto a uma opção política que nossa ordem constitucional admite como legítima, o discurso dos chefes militares extrapola os limites aceitáveis.
Está aberto o caminho para, no parágrafo seguinte, a repressão à chamada "Intentona Comunista" de 1935 ser apresentada como o equivalente à participação na Segunda Guerra Mundial - em ambos os casos, os "cidadãos fardados", como a ordem do dia diz, salvaram o Brasil dos "extremistas". 1964 aparece como um prolongamento disso. Os comunistas estavam chegando. As famílias, "alarmadas", "colocaram-se em marcha". Às pobres forças armadas não sobrava alternativa, a não ser atender "ao clamor da ampla maioria da população e da imprensa brasileira", interromper "a escalada em direção ao totalitarismo" e assumir "o papel de estabilização daquele processo".
Em suma: o golpe de 1964 e a ditadura (nunca nomeada como tal, claro) salvaram o Brasil. Está difícil ver um copo meio cheio aí.
A frase seguinte é a exaltada como demonstradora de certo remorso: "Em 1979, um pacto de pacificação foi configurado na Lei da Anistia e viabilizou a transição para uma democracia que se estabeleceu definitiva e enriquecida com os aprendizados daqueles tempos difíceis". Mas a ênfase é na "pacificação", que, pela narrativa até então desenvolvida, certamente significa que os comunistas se arrependeram. O ponto central é a Lei da Anistia, aquela que marotamente impediu que os crimes da ditadura fossem investigados. A transição, convém observar, não é para "a" democracia, mas para "uma" democracia - antes poderia, então, vigorar "outra" democracia. Essa uma democracia "se estabeleceu definitiva", o que é uma bela maneira de ignorar os sérios reveses que ela tem sofrido nos últimos anos.
Então o copo está inteiramente vazio? Não. O fato de que a retórica dos chefes militares seja tão cheia de elipses e ambiguidades mostra certa vergonha do passado da corporação. Ter na Presidência da República um bufão desqualificado que exalta a tortura dá a medida da diferença.
Os militares de hoje não têm maior compromisso com a democracia do que os de 1964 - talvez menos, já que naquela época havia uma ala legalista que logo foi extirpada. Se algo mudou em sua doutrina, foi a aceitação cada vez maior do império do mercado e o abandono da visão nacionalista. De resto, continuam vendo com enorme desconfiança a classe trabalhadora e reagindo contra qualquer tentativa de mobilização dela e de outros grupos subalternos. Podem até admitir o ritual eleitoral, desde que ele não ameace o status quo, e as liberdades civis, desde que sejam exercida nos limites que eles consideram adequados. Enfrentar a mentalidade antidemocrática da cúpula militar foi uma das muitas tarefas que os governos da transição brasileira não cumpriram. Mas, sem ela, qualquer democracia que a gente volte a construir permanecerá frágil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário