O Olavo do mercado
Por Luis Felipe Miguel.
Nas eleições do ano passado, diante da inviabilidade
eleitoral de seus candidatos, os grupos dominantes do Brasil se viram frente a
uma encruzilhada. Podiam reabrir um caminho de negociações com o PT, que
lançara um candidato presidencial mais do que palatável, Fernando Haddad, e
assinalava com clareza sua disposição para pactuar um lulismo 2.0, adequado às
condições adversas do pós-golpe de 2016. Esse caminho implicava restabelecer
algum grau de vigência da Carta de 1988 e alguma moderação no frenesi pela destrutiva
de direitos e de políticas de proteção social. A outra opção era apoiar um
candidato destemperado e despreparado, notabilizado por seu discurso
histriônico de apologia à violência e com notórias ligações suspeitas com
grupos criminosos. A burguesia, as elites políticas tradicionais, a imprensa e
as classes médias não titubearam e escolheram a segunda opção.
Com Bolsonaro na presidência batendo o recorde mundial de
vexames por minuto, muitos desses setores estão preferindo guardar distância de
seu eleito. Da goiabeira ao golden shower, passando por Queiroz e
pelos laranjais, são muitos os motivos para evitar associação com o novo
governo, que agora apanha até em editoriais do Estadão. Mesmo o
ex-juiz Sérgio Moro, o herói da cruzada para salvar o Brasil do petismo,
desmoralizou-se rapidamente. Sobra apenas um pilar do bolsonarismo no poder, o
tsar da economia, Paulo Guedes, avalista do apoio do capital ao ex-capitão, até
então visto com desconfiança, como um estatista autoritário – o problema, claro,
residia no “estatista”, não no “autoritário”.
A cobertura da imprensa é significativa. Guedes é tratado
como alguém que sabe o que faz e um dos problemas centrais de Bolsonaro seria
não priorizar, na presidência, a defesa das “reformas” prometidas por seu
ministro. Mas a competência e a sensatez de Paulo Guedes podem entrar na conta
das fake news.
“Paulo Guedes é o arauto de uma forma de fundamentalismo de mercado que bem pode ser descrita como uma espécie de terraplanismo econômico.”
Não se trata só da ignorância absoluta sobre a gestão do
ministério, ilustrada pelo episódio da célebre conversa com o então presidente
do Senado, Eunício Oliveira, em que Guedes desdenhou a aprovação do orçamento
da União dizendo “o orçamento eu faço depois”, ou pela exoneração sumária de
todos os funcionários com cargo de confiança que haviam trabalhado nos governos
petistas, paralisando as atividades por longo período – não era possível nomear
outros para seus lugares, porque até os funcionários que sabiam como fazer as
nomeações tinham sido afastados… Nem é apenas a incapacidade de discutir e
negociar, com grupos sociais ou com o parlamento, adotando sempre um tom de
ameaça.
Mais do que isso, Paulo Guedes é o arauto de uma forma de
fundamentalismo de mercado que bem pode ser descrita como uma espécie de
terraplanismo econômico. Todas as evidências mostram que a brutal
desregulamentação que ele advoga não leva ao crescimento, mas somente à
concentração da riqueza e à pauperização da população. A privatização
ensandecida de Guedes e de seu assessor Salim Mattar não equilibrará as contas
públicas e privará o Estado brasileiro de receitas e de instrumentos de ação.
Sua fúria contra o funcionalismo público, que o leva a aventar o fechamento de
instituições como o IBGE, só pode ser classificada de irracional: não é
possível imaginar um Estado moderno, mesmo mínimo, que se prive dos
instrumentos básicos de aferição da situação da sociedade que ele quer
comandar.
Guedes gosta de reciclar o velho dito de que a esquerda tem
coração e a direita tem cérebro, mas parece que a ele faltam ambos. Ele é imune
ao raciocínio lógico, ao aprendizado com a experiência histórica e à realidade
factual. A reforma da Previdência, prioridade máxima dele e do capital hoje,
serve de exemplo. O modelo pinochetista, que ele deseja implantar no Brasil, é
um perfeito case de fracasso – exceto para os especuladores
que roubaram a poupança da classe trabalhadora. Mesmo com ajustes que foram
feitos para minorar a situação (com intervenção, vejam só, do Estado!), os
aposentados recebem em média menos da metade do que lhes havia sido prometido.
Mais de 90% deles ganham cerca de metade do salário mínimo. Os jornais noticiam
uma onda de suicídios de idosos, o que talvez seja mesmo a solução ideal para
Guedes.
“Guedes gosta de reciclar o velho dito de que a esquerda tem coração e a direita tem cérebro, mas parece que a ele faltam ambos.”
A insensibilidade das nossas elites para com a situação da
classe trabalhadora é notável e se manifesta com especial virulência no debate
sobre a previdência. Guedes não tem o monopólio dela. Rodrigo Maia, por
exemplo, interveio para dizer que “todo mundo consegue trabalhar até os 80
anos” (como a expectativa de vida está em 75 anos, percebe-se que muitos vão
ter que procurar emprego na condição de almas penadas). Mas essa cegueira de
classe, ainda que comum, é indesculpável naqueles que deveriam governar a
totalidade dos brasileiros. Para Maia, como para Guedes, aposentadoria é o que
se dá à mão de obra tornada inservível e o aposentado não conta como um ser
humano que ainda tem uma vida a viver. Para o trabalhador e a trabalhadora, ao
contrário, a aposentadoria é a ansiada alforria. O momento em que eles podem
alcançar um pouco da liberdade existencial de que os burgueses desfrutam. Para
isso, é preciso que tenham duas coisas: alguma tranquilidade material e
suficiente saúde.
Essa perspectiva é silenciada sistematicamente no debate
brasileiro sobre a reforma da Previdência. Um debate limitado, enviesado, com
dogmas que, justamente por serem tão frágeis, não podem sofrer questionamentos.
Esses dogmas incluem o enquadramento da questão exclusivamente sob o ângulo
contábil e a “bomba relógio” do “indiscutível” desequilíbrio estrutural. Outro
dogma é a ideia de que trabalhador existe para trabalhar, isto é, para gerar
mais-valor, enquanto tiver um sopro de energia no corpo.
Guedes é, hoje, o repetidor-mor desse discurso dogmático.
Seu papel é enunciar certezas e impedir o debate sobre elas. A mídia gosta de
diferenciar os olavetes e fanáticos religiosos, que formariam a “ala
psiquiátrica” do governo, de seu homem no Ministério da Economia. Mas Paulo
Guedes não é tão diferente do guru de Richmond, em seu apego a teorias sem
fundamento e em sua arrogância e truculência na discussão pública. Faltam o
charuto, o licor de laranja e o tapete com a pele do pobre urso bebê, mas, a
seu modo, ele é o Olavo do mercado.
***
Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de
Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa
sobre Democracia e Desigualdades – Demodê, que mantém oBlog do Demodê, onde
escreve regularmente. Autor, entre outros, de Democracia e
representação: territórias em disputa (Editora Unesp, 2014), e, junto
com Flávia Biroli, de Feminismo e política: uma introdução (Boitempo,
2014). Colabora com os livros de intervenção Por que gritamos golpe? Para entender o impeachment e a crise
política no Brasil (Boitempo, 2016) Blog da Boitempo mensalmente
às sextas.
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