domingo, 27 de outubro de 2019

A milícia digital de Bolsonaro


Pauta bolsonarista é impulsionada por perfis-robôs

Bernardo Mello, João Paulo Saconi e Marlen Couto

Pautas bolsonaristas tiveram perfis com comportamentos de robôs entre seus principais impulsionadores no Twitter em quatro momentos distintos ao longo deste ano. É o que apontam levantamentos a partir de postagens relacionadas ao julgamento da prisão em segunda instância pelo Supremo Tribunal Federal (STF), aos recentes ataques à deputada Joice Hasselmann (PSL-SP), ao perfil “Pavão Misterioso” e ao movimento em defesa do ministro da Educação, Abraham Weintraub, nos protestos contra cortes no orçamento da pasta em maio.

Além de apontar para a existência de uma articulação entre contas automatizadas — os chamados “bots” — e militantes virtuais, os casos indicam o peso desses perfis na criação de engajamento em assuntos de interesse do presidente Jair Bolsonaro e de seus filhos, principalmente o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) e o vereador Carlos Bolsonaro (PSC-RJ). Nos quatro assuntos analisados, o presidente ou seus filhos abordaram os temas em seus perfis.

Nesses casos, contas que lideraram a lista de principais publicadores das hashtags têm alto número de tuítes em um curto intervalo de tempo. O levantamento foi feito com auxílio das ferramentas Tweet Archivist, que coleta a evolução de hashtags, e Pegabot, que indica a probabilidade de um perfil ser automatizado a partir do seu comportamento.

A campanha eleitoral do ano passado foi marcada pela ação de robôs para disseminar conteúdo político de diferentes partidos. Ainda na pré-campanha, estudo da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getulio Vargas (DAPP/FGV) revelou que a maior incidência de “bots” ocorria nos polos políticos.

Apoiadores de Bolsonaro se reúnem virtualmente, muitos deles no WhatsApp e no Reddit (fórum de discussão). São elaborados conteúdos sobre causas bolsonaristas ou alvos específicos. Empresas de marketing digital também atuam na produção

Há fluxos orgânicos e automatizados. Ao mesmo tempo em que usuários compartilham conteúdos entre si, há disparos de mensagens automáticas que espalham a produção

O conteúdo elaborado nos grupos chega às principais redes sociais — Twitter, Facebook e Instagram. Imagens, vídeos, hashtags e notícias falsas ou distorcidas são publicados por contas com comportamentos humanos e sem indícios de automatização

Comportamentos comuns em contas automatizadas:Robôs, em geral: publicam com alta frequência e velocidade sobre temas pouco diversos, retuítam mais do que escrevem, têm vocabulário restrito, mencionam perfis de influenciadores e políticos e ocultam a identidade de seus criadores

Os conteúdos ganham a chancela de influenciadores de alcance médio (internautas com alguma projeção, jornalistas e outros) e de alcance expressivo (políticos que integram a base bolsonarista, e algumas vezes da própria família Bolsonaro). Isso amplifica a circulação dos conteúdos e os temas caros à militância se tornam atrativos para observadores externos

Ações automatizadas

Durante o julgamento no STF, foram coletados quase 12 mil tuítes com #PrisaoEm2aInstanciaSim entre as manhãs de quarta e quinta-feira passadas. A amostra alcançou mais de 22 milhões de “impressões” no Twitter — quantidade de vezes em que apareceu em linhas do tempo de outros usuários. O GLOBO identificou ações automatizadas em todos os dez usuários com mais tuítes citando a hashtag nesse período, e cujas postagens corresponderam a 5% do total da amostra.

O perfil com mais publicações fez 158 posts em um dia e tem ao menos cinco contas “gêmeas”, identificadas pelas mesmas imagens e que replicam conteúdo entre si. O mesmo perfil figurou em levantamento feito pelo site da revista “Galileu”, em agosto, como o mais ativo na hashtag #AmazôniaSemONGs, usada para defender o governo em meio às queimadas na Amazônia.

A conta de Bolsonaro foi usada para comentar o julgamento do STF. No dia 17, uma mensagem do presidente dizia que “sempre deixamos clara nossa posição favorável em relação à prisão em segunda instância”. Apagado em seguida, o texto havia sido publicado em nome do pai por Carlos, que pediu desculpas pela publicação “sem autorização”.

Outra hashtag que mobilizou recentemente a família Bolsonaro é a #DeixeDeSeguirAPepa. Compartilhada por Eduardo, a campanha para reduzir seguidores dos perfis de Joice Hasselmann faz referência à personagem de desenho animado Peppa Pig e começou após a deputada ser destituída da liderança do governo no Congresso em meio à crise no PSL.

Uma amostra obtida pelo Tweet Archivist na última quinta-feira — limitada, neste caso, a cerca de 1,5 mil tuítes da semana passada, quando o boom da frase já havia passado — aponta que os dez usuários mais ativos da campanha #DeixeDeSeguirAPepa também tinham características de robôs e sozinhos corresponderam a 7% do total de postagens.

Joice acusou os filhos do presidente de comandar uma “milícia digital” com 1,5 mil perfis falsos. Eduardo negou o uso das contas. A deputada foi convidada a depor na CPI das Fake News.

Outra hashtag que mobilizou simpatizantes do governo foi a #BrasilComWeintraub, em maio, quando estudantes e professores foram às ruas contra cortes anunciados no orçamento da educação. De acordo com um estudo feito pelo pesquisador Fábio Malini, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), o perfil que mais publicou a mensagem de apoio a Weintraub, entre os dias 14 e 15 de maio, o fez 188 vezes em um intervalo de duas horas.

Já no caso da #ShowDoPavao, uma referência ao perfil Pavão Misterioso, que fez ataques ao jornalista Glenn Greenwald, do The Intercept Brasil, o principal usuário do Twitter a se engajar na hashtag contabilizou 470 mensagens em um intervalo de algumas horas, no dia 16 de junho, ainda de acordo com Malini. O perfil ganhou destaque após o Intercept divulgar conversas atribuídas ao então juiz Sergio Moro e integrantes da Lava-Jato.

Procurado pelo GLOBO, o Twitter disse que não encontrou indícios de manipulação por contas automatizadas em conversas relacionadas às hashtags mencionadas. Segundo o Twitter, “as contas apresentam comportamentos de pessoas engajadas com as conversas da plataforma e não de automação”. A empresa disse que “trabalha globalmente e em escala para combater tentativas de manipulação das conversas na plataforma”.

Riscos à democracia

A distorção causada pelo uso em massa de contas automatizadas é motivo de preocupação, afirmam pesquisadores. Professora da Escola de Comunicação da Universidade Federa do Rio de Janeiro (UFRJ), Fernanda Bruno afirma que, no Twitter, os robôs funcionam como “ferramentas de manipulação” ao impulsionarem artificialmente assuntos:

— O maior problema do impulsionamento em massa por robôs é a falta de transparência. Essas contas também têm o efeito de silenciar vozes e pautas com ataques. O usuário comum não tem controle sobre as ações dos robôs. É um ambiente pouco saudável e desigual. Isso fere as bases da comunicação democrática.

O professor da Universidade da Virgínia David Nemer monitora grupos bolsonaristas no WhatsApp desde março de 2018. Ele alerta que, no aplicativo de mensagens, também é comum o uso de automação, mas com disparos em massa de mensagens.

— São grupos organizados. O planejamento (para disseminar mensagens pró-governo) é estimulado no WhatsApp. Isso é depois materializado no Twitter, Facebook, Instagram. No WhastApp, os conteúdos circulam primeiro.

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