quarta-feira, 23 de outubro de 2019

É difícil não ceder à tentação do desespero quando se olha para o Brasil

Luis Felipe Miguel

A reforma da Previdência aprovada ontem é uma tragédia para as trabalhadoras e trabalhadores brasileiros. E é emblemático que ela ocorra no exato momento dos protestos do Chile - país apresentado por Paulo Guedes e seus acólitos como modelo e inspiração.

O debate sobre a reforma da Previdência foi marcado pela desinformação, pela mentira e pela má fé. De cara, já foi enquadrado como uma questão contábil, vetando a discussão sobre direitos; e, nessa leitura contábil, as equações foram enviesadas para inchar o "déficit" que tornaria a reforma inadiável. E, como mostraram os economistas da Unicamp, mesmo assim os resultados foram falsificados pelo Ministério da Economia.

A exposição das manobras teve repercussão igual a zero. A mídia continuou repetindo os números falsos, o Congresso não retomou o debate. O objetivo, que já era claro, ficou claríssimo: não se trata de equilibrar contas. Trata-se de ampliar a exploração do trabalho.

O "desequilíbrio das contas" precisa continuar na ordem do dia, a fim de justificar novas reformas regressivas. Por isso, conforme a aprovação da redução dos direitos previdenciários tornava-se mais certa, o discurso mudava. Para Guedes e para os economistas e jornalistas a seu serviço, a reforma da Previdência não é mais a panaceia antes anunciada.

Agora, a agenda é uma reforma administrativa que destrua o serviço público no Brasil, o fim dos gastos obrigatórios em áreas como educação ou saúde e uma reforma tributária para, uma vez mais, beneficiar os mais ricos.

Alguém duvida que eles vão aprovar o grosso disso tudo? Olhemos para os números da reforma da Previdência. Foi um passeio.

Não é que as pessoas não soubessem que a reforma era nociva a seus direitos, a seus interesses. Sabiam. Mas não houve mobilização, não em medida que fosse remotamente suficiente para barrá-la.

Outro dia escrevi aqui sobre a passividade do povo brasileiro e muita gente não gostou. Acredito, por algumas reações, que acharam que eu estava apontando uma falha moral ou um defeito genético. Vi textões exaltando a história de lutas aqui ocorridas. Herança, talvez, da visão romântica de que "o povo", sempre puro e bom, deve sempre ser louvado.

Mas a questão não é de pureza ou bondade. É entender o que, nos mecanismos de dominação aqui implantados, faz com que as reações sejam tão fracas diante da iniquidade do nosso mundo social. Cheguei a insinuar, provocativamente, uma resposta parcial: "enquanto a preocupação maior for montar as chapas para as eleições do ano que vem, não sairemos disso".

O fato é que é difícil não ceder à tentação do desespero quando se olha para o Brasil. Do fim da ditadura até Dilma, avançamos a passo lento, poucas vezes ensaiando um trote em uma ou outra questão, não raro amargando paradas e mesmo retrocessos. Do golpe de 2016 para cá, estamos recuando a galope e, a partir de Bolsonaro, de maneira ainda mais acelerada.

O que perdemos nesses poucos anos e o que tudo indica que ainda vamos perder no futuro próximo foi construído ao longo de gerações. Quantas gerações serão necessárias para recompor tudo isso?

Enquanto isso, Bolsonaro se fantasia de palhaço para ir a uma cerimônia no Japão. Sei que não é de caso pensado, mas parece que ele se ocupa de fornecer o circo enquanto escasseia o pão.


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