Sérgio Augusto
Publicada pela escritora Karin Boye, livro narra as agruras de um cientista inventor de um soro da verdade
Tanto fizeram e continuam fazendo, que Distopia, a exemplo de Policial, Guerra, Romance, já se consolidou como um subgênero literário, com nicho exclusivo em algumas livrarias estrangeiras. Ficção científica e literatura futurista ou de antecipação tornaram-se qualificativos demasiado genéricos para fantasias ambientadas em sociedades opressivas ou constantemente assombradas por ameaças autoritárias como, por exemplo, a que o general Villas Bôas dirigiu ao STF, no início da semana, e o presidente da República vem realejando desde a campanha eleitoral.
Da obra de Ray Bradbury, por exemplo, só Fahrenheit 451 divide a mesma prateleira de 1984, de George Orwell; Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley; Nós, de Yevgueni Zamiátin; e O Homem do Castelo Alto, de Philip K. Dick.
Os clássicos distópicos não saem, et pour cause, dos catálogos das editoras, são constantemente retraduzidos e convertidos em filmes e séries de TV. Avidamente consumidos por puro deleite ou mesmo por masoquismo e catarse, sobretudo depois da eleição de Trump, eles ganharam, nos últimos tempos, pelo menos uma dedicada praticante de alto nível, a canadense Margaret Atwood, premiada dias atrás com o prestigiadíssimo Booker Prize pela continuação de O Conto da Aia (The Handmaid’s Tale).
Em The Testament, Atwood nos devolve, 15 anos depois, à teocracia fundamentalista e militarizada de Gilead, em relato não mais conduzido por Offred, mas por três vozes femininas: a instrutora Lydia e duas jovens que não conheceram o mundo antes da tirania machista. Era intenção da autora não levar The Handmaid’s Tale adiante, mas a supressão da liberdade e a assustadora ascendência de religiosos fanáticos em diversas democracias laicas e certas dúvidas levantadas por leitores do romance desde a sua publicação, convenceram-na do contrário.
A ficção distópica era, até pouco tempo, um feudo masculino. O protagonismo conquistado por Atwood veio dar continuidade a um efêmero desvio ocorrido em 1940, com a publicação de Kallocaína, da sueca Karin Boye (1900-1941). A poeta mais querida dos suecos, Boye escreveu apenas dois ou três livros de ficção, nenhum do mesmo vulto e repercussão internacional de Kallocaína — Um Romance do Século 21, que acaba de ser reeditado pela Carambaia (256 págs., R$ 86), em nova tradução, de Fernanda Sarmatz Akesson.
A tradução anterior, do gaúcho Janer Cristaldo, tradutor de Ernesto Sábato, Robert Arlt e outros autores latino-americanos, saiu pela Editora Americana, em 1974, e até em sebo é difícil encontrá-la. Já estava fora de catálogo seis anos atrás, quando Michel Bercovitch encenou, no Teatro Sérgio Porto, do Rio, uma adaptação do texto ao teatro. A minissérie em dois episódios, dirigida por Hans Abramson para a TV sueca em 1981, nunca chegou aqui.
Kallocaína não se traduz por “Calocaína” (bom nome para remédio contra dor e droga ilegal) porque deriva de Kall, Leo Kall, seu inventor, fictício cientista do totalitário Estado Mundial, que atrás das grades escreveu suas memórias da distopia em que teve a desventura de viver. Não é um opioide, mas uma espécie de pentotal turbinado, o supra-sumo do que vulgarmente chamam de “soro da verdade”. Injetado na corrente sanguínea do paciente, solta-lhe a língua com mais eficácia que as promessas de uma delação premiada.
A kallocaína é o sonho dourado do Grande Inquisidor de Doistoievski, o demo padroeiro das distopias e uma das prováveis referências literárias de Boye. Outra é Kafka, reconhecida pela própria escritora, que, aliás, teve uma vida conturbada, confrontando a família, a crença religiosa e a identidade sexual. Livre de um casamento infeliz com um colega de ativismo político de esquerda, assumiu seu lesbianismo, mas a depressão levou-a ao suicídio, em abril de 1941, um ano após a publicação de Kallocaína.
A decepção que tivera com a União Soviética em 1938 e o que presenciara nos albores do nazismo, numa estada em Berlim para tratamento psicanalítico contra a depressão, foram os detonadores de Kallocaína, como também de 1984, publicado oito anos depois.
Não se sabe se Orwell conhecia o romance de Boye. As distopias de Zamiátin (1920) e Huxley (1932) ele não apenas as leu como as resenhou. Há pontos em comum entre Leo Kall, um cientista como o D-503 de Nós, e Winston Smith, o anti-herói de 1984, assim como entre o Estado Mundial de Kallocaína, o de Admirável Mundo Novo, e a Oceânia à mercê do Big Brother.
As tiranias são espelhos umas das outras: o Estado é tudo, o indivíduo não é nada, o amor é um sentimento obsoleto e, acima de tudo, perigoso, subversivo, e o livre arbítrio, um luxo inadmissível. O que importa é a ordem, é a harmonia sob tacão de forças armadas e tecnologicamente avançadas a serviço de uma elite difusa.
O slogan do Estado Mundial de Huxley—“Comunidade, Identidade e Estabilidade”—são engodos demagógicos, invalidados pela ausência dos valores básicos da liberdade de escolha e expressão, da fraternidade sincera e da igualdade social. Huxley agendou seu “mundo novo” para circa 2545 (ou 632 anos d.F, isto é, depois de Ford, Henry Ford), mas em 1959 admitiu ter subestimado a rapidez com que os novos recursos de manipulação do comportamento humano avançaram nas duas décadas anteriores.
Huxley inventou o soma, uma espécie de “soro da euforia” que induz as pessoas a um estado de otimismo e bem-estar físico, de inestimável valia para a sustentação de qualquer ditadura. É um consolo constatar que nem o soma nem a kallocaína tenham sido inventados. Talvez porque, a essa altura, desnecessários.
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