domingo, 15 de dezembro de 2019

A mentira como diversão


Fake news tiram sua força do entretenimento
O mundo real e a verdade podem ser enfadonhos
Renato Janine Ribeiro

Fake news é uma expressão charmosa para o que sempre foi chamado de mentira. Só que há algo mais aqui. Podemos mentir mil vezes em coisas pontuais, mas as fake news fazem parte de um sistema, de uma estratégia. Uma mentira sozinha não é fake news. Só é fake news quando integra um sistema de mentiras, organizado para obter vantagens políticas e/ou econômicas.

Uma andorinha só não faz verão; nem fake news. Precisa haver organizações ou grupos, que podem ser visíveis (como um partido em campanha); escondidos, mas que depois são denunciados (a agora célebre Cambridge Analytica ou as equipes que, segundo ex-bolsonaristas, teriam atuado na eleição passada); ou ainda, e talvez para sempre, bem ocultos.

Fazer fake news é um empreendimento, é coisa de quem se organiza como empresa. Não é para amadores. Mas não sei se um dia sairá um manual para ensinar “engane bem com fake news”. O sucesso delas está em passar por verdade. A mentira só dá certo quando acreditam nela, quando pensam que não é o que é, e sim que é verdadeira. 

Tudo indica que o paraíso das fake news é o WhatsApp. Por que ele, e não as outras redes sociais? Porque o Facebook, embora você possa configurá-lo para apenas poucas pessoas verem suas postagens, é, em princípio, público.

Já o WhatsApp se dirige estritamente a grupos fechados e, segundo alega, suas mensagens são protegidas de qualquer olhar, até de seu dono, Mark Zuckerberg, ou do governo americano. Não há como quebrar o sigilo do “zap”, submetê-lo às leis de proteção da honra, exigir direito de resposta. Não há contraditório, não há escrutínio público —elementos essenciais da informação veraz e da disputa democrática.

Mas a grande pergunta é: por que as fake news têm tanto sucesso? Por que seus conteúdos fascinam? Sustento que o maior sucesso no WhatsApp é quando se recorre ao entretenimento, em particular ao audiovisual. A assustadora reportagem do The New York Times sobre a campanha antivacina mostra que ela emplacou no Brasil graças a vídeos difundidos em grupos do aplicativo.

As imagens seduzem. Mais que isso, imagens dão uma impressão (um especialista diria talvez um efeito) de verdade, com o qual palavras não podem competir. Sabemos da facilidade de criar imagens ou mesmo filmes fakes. Há aplicativos que fazem isso. E o espectador acredita. Mais que isso, tem prazer.

Difícil competir com o prazer, com o entretenimento, quando ele toma o lugar da notícia, da análise. O mundo real e sua cobertura, jornalística ou acadêmica, são prosaicos. Podem ser enfadonhos. O Jornal Nacional só tem grande audiência, e mesmo assim abaixo da novela, porque trata o espectador como um Homer Simpson (na frase atribuída a William Bonner). Entretém.

Como enfrentar essa orgia de mentiras, que entre outros promoveu o sucesso do Brexit e de Trump? Como fazer a prosa jornalística e acadêmica vencer o entretenimento fantasiado de informação? Como fazer a palavra racional refutar imagens que mentem direto à emoção? A pergunta não é nova; o assunto já foi discutido por Platão, em “Banquete”, mais de 2.000 anos atrás; mas é o grande desafio hoje, sobretudo para a imprensa e para a democracia.

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