quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

O trabalho não dignifica as pessoas


O TRABALHO NÃO DIGNIFICA A PESSOA, NUNCA DIGNIFICOU!

Cadu de Castro

O trabalho sempre esteve presente em toda e qualquer sociedade humana. Não há, nem nunca houve, sociedade que sobrevivesse sem o trabalho, portanto, quando alguém diz que determinado povo é preguiçoso, só faz ostentar enorme ignorância e preconceito. Toda e qualquer sociedade trabalha, no entanto, há diferentes conceitos do que é trabalho.

Desde a pré-história, comunidades humanas tinham a subsistência baseada na caça e coleta (caçadores-coletores), assim, este era o tipo de trabalho que exerciam, além da produção de ferramentas, utensílios e arte. Há cerca de 10 mil anos, alguns povos descobriram a técnica de cultivo de alguns alimentos, e a agricultura também passou a ser um tipo de trabalho.

Durante a Idade Média, na Europa feudal, a divisão da sociedade era tripartite: a aristocracia era a proprietária das terras e sua função era defendê-la militarmente, eram os "beliatores"; os filhos da aristocracia, que não herdavam as terras, formavam boa parte do clero, cuja função era a de orar pela sociedade, eram os "oratores"; e a imensa maioria das pessoas formava o grupo dos “laboratores”, servos (camponeses) que trabalhavam a terra para sustentar os outros dois grupos.

Alguns historiadores descrevem uma instituição feudal denominada jus primae noctis), também conhecido como direito do senhor ou direito da pernada, que era a premissa que o senhor feudal tinha de passar a primeira noite com as mulheres que se casavam. Isto é, as núpcias de todas as esposas era um privilégio do proprietário do feudo. Ora, era esta a dignidade da classe trabalhadora que, como hoje, sustentava a aristocracia (hoje as elites) e os religiosos? Historicamente, os trabalhadores, que dentro do conceito do trabalho no ocidente são a base da pirâmide, nunca exerceram o poder econômico e político, ao contrário, foram sempre explorados e humilhados.

No século XVI, o reformista Martinho Lutero transformou o trabalho em virtude, portanto, dentro da ética protestante o trabalho é sinal de graça. João Calvino pregava que só os predestinados seriam salvo, contudo, como não era possível saber quem era predestinado à salvação, entendia-se que os eleitos por Deus manifestavam sinais, como o trabalho árduo e a vida frugal, sem excessos.

Forja-se assim a ideia de que “o trabalho dignifica a pessoa”. A aristocracia continuou a não produzir - como nunca produziu - e a gozar dos excessos, assim como o alto clero. A preguiça era pecado capital para o camponês, mas não para a aristocracia e nem para o clero, fosse ele católico ou protestante.

O pensamento iluminista, que se consolidou no século XVIII, encontrou apoio da burguesia, pois pregava a liberdade econômica, o antropocentrismo, o desenvolvimento da ciência e o predomínio dos ideais burgueses. Criticava-se o absolutismo e o poder herdado pela nobreza. Rousseau, em “O Contrato Social” defendeu que o soberano deveria dirigir o Estado seguindo a vontade do povo, e que o papel do Estado seria o de mediar os interesses da sociedade civil. 

Adam Smith, em “A riqueza das nações” defendeu que a classe burguesa era a verdadeira produtora de riquezas e que o papel do Estado monárquico deveria ser diminuído. Assim, entendia-se que a riqueza era fruto exclusivo do mérito, desconsiderando contextos históricos e sociais, pois a base do trabalho continuava a ser explorada e desvalorizada. Defendia-se que a riqueza burguesa era fruto do trabalho, e ignorava-se que a pobreza do trabalhador era fruto da exploração aristocrática e burguesa. O Capital reproduziu largamente todo trabalho como virtude e o naturalizou nas mentalidades ocidentais.

No século XIX, Marx produziu uma análise profunda sobre estas questões e trouxe à tona aquilo que já existia: a luta de classes gerada pela exploração da mão de obra operária por parte das classes burguesas. Previu e defendeu a revolução do proletariado - “Trabalhadores do mundo, uni-vos”, frase de Flora Tristan, que inspirou relevantemente o pensamento marxista.

Ora, se o trabalho dignificasse a pessoa, não haveria ninguém mais digno que os escravizados, pois trabalhavam em jornadas diárias de até 19 horas. No entanto, a população negra sofre até hoje as sequelas sociais da exploração e crueldade a que seus antepassados foram submetidos.

O sistema (elite política e econômica) e a igreja (religiões diversas), que quase sempre caminharam de mãos dadas, consolidaram a ideia do trabalho como virtude: “Deus ajuda a quem cedo madruga”. Estruturaram as mentalidades sociais de maneira que a cultura do trabalho fosse sempre sobrevalorizada. O trabalhador do início do século passado tinha uma jornada diária de dezesseis horas. Mal comia, mal dormia, mas sentia-se “enobrecido" pelo seu esforço sobre-humano.

“Fulano é trabalhador”! A qualidade de “trabalhador" o legitimava como pessoa de bem. Pouco importa se era um agressor doméstico, uma mau pai, etc. O Código Penal de 1890 dizia que "exercícios de habilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação de capoeiragem”. Capoeira, samba, isto é, cultura ou trabalho de preto, eram vadiagem. O Código Penal brasileiro, de 1942, dizia que a vadiagem configurava crime de quem "habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que assegure meios bastantes de subsistência, ou de prover a própria subsistência mediante ocupação ilícita”, como a prostituição, por exemplo. Um morador em situação de rua, ainda que tivesse problema psiquiátrico, era considerado um “vadio”.

Desde o século passado, as políticas neoliberais vêm desmantelando os direitos trabalhistas construídos por décadas de luta da classe trabalhadora. No século XXI surgiram novas práticas que devolveram o trabalhador às jornadas desumanas e salários baixíssimos. É o que ocorre com a chamada “uberização” do trabalho. Travestida do eufemismo de empreendedorismo é uma espécie de servidão contemporânea. 

Hoje, a ideia forjada do trabalho como virtude prevalece. Une-se a ela o conceito equivocado e distorcido de prosperidade, baseado em acesso aos bens de consumo. Essa falsa bonança contribui para que as pessoas coloquem em prática a sua “virtude" e trabalhem cada vez mais para consumirem cada vez mais. Mas isto é assunto para outro texto.

O ócio é desqualificado. A obsessão por trabalho - que pode ser patológica - é vista como predicado. Sociedades que têm conceitos e relações com o trabalho diferentes das nossas são ditas “preguiçosas”. As pessoas deveriam trabalhar muito menos horas, pois o ócio é necessário para a saúde física e mental. Mas não! Somos impelidos a trabalhar o tempo todo. Novas tecnologias têm chegado para ampliar nosso tempo de trabalho. Redes sociais - como o Whatsapp -, celulares, micros, tablets, etc., trazem o trabalho até a nossa casa, em nossos pretensos “momentos de descanso”.

Como escreveu Huxley: "A ditadura perfeita terá a aparência da democracia, uma prisão sem muros na qual os prisioneiros não sonharão sequer com a fuga. Um sistema de escravatura em que, graças ao consumo e ao divertimento, os escravos terão amor à sua escravidão."

Deveríamos trabalhar para nossas subsistência, mas o consumo, a acumulação de bens, não nos permitem. Há quem se disponha a distintas jornadas de trabalho para, quando muito, poder pagar o cartão de crédito ou os carnês no fim do mês. Precisamos refletir sobre isto. Estamos doentes.

O ócio nos é imprescindível. Precisamos de tempo livre para dedicarmos às nossas relações sociais, aos familiares e amigos. Pais não têm tempo para doar à educação de seus filhos, pois só trabalham. Compensam a ausência comprando “coisas”. O trabalho não nos dignifica, nunca dignificou a nenhum trabalhador. Só enriquece ainda mais quem detém o poder econômico e político.

É sintomática a ânsia do trabalhador para chegar a sexta-feira, ou o dia de folga. É evidente a “tristeza” gerada pela expectativa de proximidade da segunda-feira. Lembro da melancolia gerada pela música do Fantástico, programa dominical noturno da Globo, que anunciava o início de mais uma semana de labor. Pois, dedicamos boa parte de nossa vida ao trabalho e uma parte pequena à convivência com pessoas queridas.

Como mudar isso? Mudando o estilo de vida. Abrindo mão daquilo que nos vendem como “conforto”, da felicidade disposta em prateleiras. É necessário estabelecer uma relação diferente com as pessoas e com as coisas. É preciso mudanças de paradigmas, e que sejam profundas.

Bem, alguns dirão que este é mais um textão e que quase ninguém lerá. No entanto, escrevo para quem quer ler. Haverá também os de pouco entendimento, dizendo que estou fazendo apologia à vadiagem. Paciência, escrevo para quem esteja aberto à reflexão. 

Assim, reafirmo: o trabalho não dignifica as pessoas. O que nos dignifica são nossas ações coletivas positivas. O que nos dignifica é o tempo para o ócio e para as pessoas que amamos. E só! O trabalho, quando muito, nos sustenta.

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