Por Max Balhorn
O filme Parasita, de Bong Joon Ho, indicado ao
Oscar às categorias de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional, foi um enorme
sucesso entre os críticos e o público. Depois de sua estréia vencedora do Palme
Ouro em Cannes, vendeu mais de dez milhões de ingressos somente na Coréia do
Sul, tornando-se o quarto filme de maior bilheteria do país em 2019.
Com uma receita de mais de 120 milhões de dólares em todo o
mundo, Parasita é o sétimo filme do diretor Bong Joon Ho e o mais bem-sucedido
até hoje. Vindo de um diretor cujos filmes geralmente apresentam personagens
marginalizados que lutam contra a opressão (veja Barking Dogs Never
Bite, Gwoemul
— O Hospedeiro e, mais recentemente, Expresso do Amanhã), Parasita foi
aclamado como uma crítica clara e lúcida à desigualdade de riqueza na sociedade
sul-coreana.
O filme (spoilers abaixo!) é considerado uma alegoria da
desigualdade de classe desenfreada e da frustração popular pela falta de
mobilidade social em um dos países mais ricos da Ásia. Em um artigo para
a Jacobin, Eileen
Jones elogiou Parasita por ir além de simples propostas alegóricas,
afirmando que o filme “cristaliza as experiências de uma família de classe
marginalizada tentando se agarrar, desesperadamente, a uma chance para melhorar
a vida, retratadas de uma forma que te machuca”.
No New York Times, Brian
X. Chen descreveu o filme como um confronto entre “os que têm contra
os que não têm” e interpreta o golpe realizado pela família Kim no filme como
uma vingança pela “amargura e frustração” de uma sociedade projetada para
garantir que apenas os ricos tenham sucesso. Scott
Mendelson chamou o filme de “retrato social brutal” sobre a vida dos
ricos, dependentes do trabalho de uma classe marginalizada não reconhecida que
“mal pode se dar ao luxo de viver na civilização para a qual fornece o
alicerce”.
O encontro entre as famílias Kim e Park em Parasita é,
de fato, uma metáfora bastante óbvia para antagonismos de classe na sociedade
sul-coreana. Mas focar apenas na riqueza material pode negligenciar uma crítica
mais sutil e, em última análise, mais devastadora latente no filme de Bong Joon
Ho. O filme também foca na privação de dignidade, auto-respeito e status social
das pessoas da classe trabalhadora, ao passo que nossos trabalhos e nossas
vidas são cada vez mais precarizados pela dinâmica hostil do capitalismo
neoliberal.
Vivendo de Salário em Salário
Primeiro, o enredo. Em Parasita, uma família
empobrecida da classe trabalhadora de Seul, de sobrenome Kim, se infiltra no
mundo dos ricos através de uma série de golpes engenhosos. Quando o filho
Ki-woo recebe de um amigo a oferta de um bico lucrativo, dar aulas particulares
à filha de uma família rica — de sobrenome Park —. No entanto, Ki-woo enfrenta
a leve complicação de não ter frequentado a universidade, pois, sua família não
podia pagar as mensalidades. Prevendo que a família Park só aceitaria um
estudante universitário, ele aparece com um comprovante de matrícula forjado
por sua irmã com uma fina vocação artística.
Surpreso com a ingenuidade dos ricos, Ki-woo bola uma série
de planos
ao estilo Missão Impossível para levar toda a sua família
a trabalhar para os Parks. A irmã de Ki-woo, Ki-jeong, se torna professora de
“arteterapia” do peculiar e um tanto difícil filho caçula dos Park. O pai de
Ki-woo, Ki-taek, é contratado como motorista particular. A mãe de Ki-woo,
Chung-sook, se instala como nova governanta após expulsarem a antiga
funcionária que trabalhava à família há tempos.
Mantendo os laços familiares em segredo, seus novos empregos
tiram os Kim da pobreza aparentemente inevitável em poucas semanas. Em um
mercado de trabalho carente de posições estáveis e bem remuneradas, em que os
trabalhadores recorrem frequentemente ao trabalho autônomo ou à mão de obra
intermitente e sem proteção, os Kim tiraram a sorte grande.
Os Kim representam a situação da classe trabalhadora
sul-coreana. Eles moram amontoados em um apartamento sombrio em um semi-porão
em Seul, onde são submetidos a bêbados urinando ao lado da sua janela da
cozinha todas as noites. Suas vidas contrastam com as vidas dos ricos da
família Park, que desfrutam do raro privilégio de possuir uma casa luxuosa e
fechada, com um amplo jardim paisagístico (praticamente inconcebível nas densas
cidades da Coréia do Sul).
O simbolismo em Parasita não termina aí. Os
Kim sobrevivem fazendo bicos e, mesmo quando têm dinheiro, comemoram comendo
num buffet para taxistas — uma maneira barata de consumir uma refeição rica em
calorias. Esse simbolismo não se perde nos espectadores de cinema em Seul, hoje
uma das dez
cidades mais caras do mundo, com os produtos
alimentícios mais caros da Ásia. Os Park, por outro lado, abastecem
sua geladeira com água mineral com gás e alimentam seus cães com ração orgânica
de alta qualidade e kani-kama japonês.
As dietas dos ricos e pobres são, de fato, um impressionante
índice de desigualdade na capital sul-coreana. De acordo com um estudo de
2018 que avaliou 1.023 residentes de Seul, mais de 20% da população de
baixa renda não recebe os nutrientes adequados — um número quatro vezes acima
da média nacional. Além disso, 10% dos moradores de baixa renda sofrem de
insegurança alimentar, o que significa que eles não têm acesso confiável aos
alimentos de que precisam para ter uma vida saudável e ativa. Somado à
variedade geralmente menor de produtos frescos, isso alimenta uma situação em
que os pobres de Seul também sofrem maiores taxas de pressão alta, diabetes,
obesidade e doenças cardíacas.
Sem plano
Em uma cena na metade do filme, quando o pai da família Kim,
Ki-taek, leva o Sr. Park para um compromisso, ele tenta se passar por um
veterano na profissão, inventando uma história sobre seu longo caso de amor com
sua vocação. Park acena com a cabeça e responde: “Eu respeito quem trabalha na
mesma área por muito tempo”. Temas semelhantes sobre compromisso profissional,
“ter um plano” e autossuficiência se repetem ao longo do filme.
Enquanto Ki-woo fica parado na porta de casa, a caminho da
entrevista de emprego, com os documentos falsificados na mão, ele diz ao pai:
“Não considero isso um crime. Eu vou frequentar esta universidade um dia. Pense
nisso como se eu estivesse apenas recebendo os documentos um pouco mais cedo”.
Seu pai responde: “Ah, então você tem um plano!” Quando o vizinho de cima muda
a senha do Wi-Fi, Chung-sook pergunta ao marido: “Nossas linhas de telefone já
não funcionam. Agora nosso Wi-Fi está desligado. Então, qual é o seu plano?”
Mais tarde, depois que o apartamento dos Kim é inundado e
eles acabam dormindo em um ginásio, Ki-taek diz ao filho: “Ki-woo, você sabe
qual plano nunca falha? Nenhum plano. Você sabe porque? Se você faz um plano, a
vida nunca funciona como planejado”.
Para os moradores mais velhos de Seul, essa cena
provavelmente evoca as inundações recorrentes no bairro vizinho de Mangwon na
década de 1980, uma área de baixa renda adjacente ao aterro sanitário. A
cidade negligenciou
conscientemente a represa do rio Han, causando inundações devastadoras
que prejudicaram a vida das pessoas pobres e idosas que vivem lá. Os moradores
de Mangwon entraram com uma ação coletiva contra a cidade e receberam uma
indenização, dando origem à Lawyers for a Democratic Society, a
primeira organização de advogados voltada para direitos humanos e democracia na
Coréia do Sul.
Ao longo de todo o filme, a precariedade do bairro dos Kim é
fortemente contrastada com a segurança adquirida pela riqueza acumulada dos
Park. Sem o conhecimento do Sr. Park, antes de serem contratados pelos ricos,
Kim Ki-taek e sua família haviam tentado vários empregos para sobreviver. O
filme começa com os Kim sentados em sua cozinha, dobrando caixas de pizza para
um restaurante próximo — um bico precário para ganhar alguns trocados. Ki-taek
também menciona anteriormente a operação de uma franquia de frango frito e uma
confeitaria taiwanesa de bolos castella [um tipo de pão de ló], além de
trabalhar como motorista daeri.
Motoristas daeri levam pessoas bêbadas para
casa em seus próprios carros tarde da noite, uma forma comum de prestação de
serviço itinerante realizada por subempregados nas cidades sul-coreanas. Eles
são forçados a ficar de plantão o dia inteiro, geralmente esperando na rua sem
um lugar para descansar, se abrigar do mau tempo ou até usar o banheiro. A
maioria dos motoristas em turno integral recebe pouco mais de
um salário mínimo por mês e relata sofrer diversos problemas de saúde,
incluindo problemas osteomusculares, fadiga e estresse.
Os motoristas da cidade de Daegu formaram seu próprio
sindicato já em 2005,
mas tiveram seus direitos sindicais negados em nível nacional sob as
administrações de Lee Myung-bak e do recém
deposto Park Geun-hye. Apesar das promessas do atual governo Moon Jae-in,
os motoristas daeri foram novamente impedidos de se registrar
como uma organização nacional em 2017 pelo Ministério do Trabalho.
No entanto, isso pode estar mudando. Em uma série de decisões judiciais em
novembro de 2019, respondendo à crescente pressão exercida pelo trabalho
organizado, os motoristas daeri, assim como entregadores de delivery e caddies (carregadores
de tacos de golfe), foram reconhecidos como “trabalhadores” em vez de
“prestadores de serviço” segundo a constituição sul-coreana — abrindo caminho
para o direito de formarem um sindicato. Para os motoristas daeri que
lutam pelos direitos de sindicalização há mais de uma década, a capacidade de
negociar contratos coletivamente pode significar o fim dos salários de fome.
Sem esses direitos, seria um grande desafio para os motoristas daeri “trabalharem
na mesma área por muito tempo”, o que o Sr. Park tanto admira.
A Castella-mania
Em uma reviravolta dramática na metade do filme, a
governanta demitida Moon-gwang retorna enquanto a família Park passa o fim de
semana fora e implora a Chung-sook que a deixe entrar em casa. Aparecendo
desgrenhada, machucada e incoerente, ela corre para uma sala secreta no porão,
onde os espectadores descobrem que seu marido, Geun-sae, está se escondendo de
agiotas há quatro anos. Depois de escaparem do seu próprio porão para a
propriedade palaciana dos Park, os Kim descobrem que outra família da classe trabalhadora
estava levando uma vida ainda mais miserável no porão logo abaixo dos seus pés.
Geun-sae explica que é tudo culpa dele. Ele havia feito um
empréstimo com um agiota para abrir uma confeitaria “king
castella” — uma modinha que começou em Taiwan e explodiu na Coréia do
Sul em 2017. Devido aos baixos custos iniciais, essas confeitarias eram
relativamente baratas de se abrir e vários sul-coreanos apostaram suas
economias esperando ficar ricos com essa moda passageira. O mercado logo ficou
saturado e a bolha do “king castella” estourou, deixando centenas, senão
milhares de pessoas com dívidas enormes e nenhuma condição de pagá-las.
Esse tipo de história é comum na Coréia do Sul, onde a falta
de emprego estável e com carteira assinada impele as famílias a abrirem seus
próprios negócios, na esperança de mandar seus filhos para a faculdade e se
aposentar com algumas economias. Em 2017, 25,4%
dos sul-coreanos eram autônomos, geralmente operando estabelecimentos
como restaurantes de frango frito e lojas de conveniência — significativamente
acima da média de 15,3% dos países da OCDE como um todo.
Com mais de 8.000 lojas de
frango fechando as portas no país todos os anos, para a maioria dos
trabalhadores que já se esforça para sobreviver, o fracasso dos negócios da
família muitas vezes os afunda ainda mais em dívidas e desespero. Esse
desespero, uma experiência familiar para milhares dos espectadores
sul-coreanos, é o pano de fundo em que se desenrola a vida das duas famílias
“de porão” retratadas em Parasita. No caso extremo de Geun-sae, o
desespero o leva, literalmente, à clandestinidade subterrânea.
Ganhando “respeito”
Quando o pai da família Kim, Ki-taek, acaba se escondendo no
porão secreto da casa dos Park, ele testemunha o estranho ritual de Geun-sae,
que transtornado e de olhos arregalados, agradece a Park. Geun-sae fica na
frente de uma página arrancada de uma revista financeira que apresenta o Sr.
Park como “CEO do ano”, e agradece a ele por “me alimentar e me alojar” —
seguido de uma exclamação de “Respeito!”. Ki-taek, perplexo, pergunta: “Você
faz isso todos os dias?” Geun-sae então revela que, ao manipular interruptores
de luz no porão, ele envia à família Park mensagens diárias de agradecimento
usando código Morse. Incapaz de traçar os paralelos entre a situação de Geun-sa
e a sua, Ki-taek pergunta: “Como você consegue viver em um lugar como este? O
que você vai fazer no futuro? Você não tem um plano?”
Cenas de agradecimento e gratidão imerecida pela
“benevolência” dos ricos se repetem ao longo do filme. Depois de toda a família
Kim ser empregada pelos Park, Ki-taek sugere em um jantar que “façam uma oração
de agradecimento ao grande Sr. Park” pelos rendimentos que ele fornece à
família.
Os personagens da classe trabalhadora em Parasita internalizam
a lógica do capitalismo tardio — o que leva pessoas como os Kim a considerarem
a pobreza uma consequência de suas próprias falhas morais, não o resultado de
um sistema construído sobre a exploração e a precariedade perpétua. No filme,
essa lógica resulta em um “respeito” não merecido pelos ricos — impedindo que
os pobres que vivem no porão se identifiquem entre si e encontrem força na
solidariedade.
Planejar para vencer
Além de simplesmente ser um ótimo filme, Parasita ressoa
com o público porque coloca os holofotes sobre a injustiça econômica,
repetidamente evocada pelo semi-porão em que mora a família Kim. Em uma cena
tensa, o caçula dos Park comenta que o motorista da família, a governanta e os
dois professores têm o mesmo cheiro — uma consequência do odor mofado e úmido
que o “apartamento” dos Kim deixa em suas roupas. Em uma série de artigos,
tweets e postagens no Facebook após o lançamento do filme, o
“semi-porão” passou a simbolizar as experiências coletivas das classes menos
privilegiadas de Seul, experiências que são totalmente alheias a quem nasceu na
riqueza e com todas as oportunidades sob a mesa.
No entanto, o que torna a crítica de Bong Joon Hon à vida
sob o capitalismo tão condenatória não é o mero fato de ele destacar as
desigualdades, mas sua representação da desmoralização dos trabalhadores sob o
neoliberalismo de maneira geral. Presos em eternos ciclos de pobreza, os Kim
estão constantemente à procura de emprego, um sinal de Wi-Fi grátis e uma
maneira de escapar do cheiro de “trapo cozido” que os marca como pobres. Eles
constantemente inventam novos esquemas para escrever uma história de vida digna
de respeito.
A vida dos Park, por outro lado, exala permanência e
estabilidade. Eles moram numa casa histórica projetada por um arquiteto famoso
— um motivo de orgulho constante em conversas com visitantes. Eles desfrutam do
luxo de passar tempo juntos à noite e viajam nos fins de semana para comemorar
aniversários.
Os Kim e milhões de trabalhadores sul-coreanos estariam sob
menos pressão trabalhando em empregos tão precários se o país aplicasse
melhores proteções trabalhistas. A Coréia do Sul tem um movimento trabalhista
forte e orgulhoso, mas nunca teve um governo de esquerda para reescrever as
leis trabalhistas do país. Apesar das promessas de campanha do atual presidente
Moon Jae-in, pouco foi entregue até agora e as pessoas da classe trabalhadora
continuam a conciliar vários empregos apenas para chegar ao final do mês.
Dessa forma, o filme de Bong Joon Ho satiriza magistralmente
a cultura neoliberal da autoconfiança que permeia a sociedade sul-coreana,
forçando os trabalhadores a assumir a total responsabilidade econômica por si
próprios, ao mesmo tempo em que os estigmatiza como indignos de respeito e
humanidade quando o capitalismo põe suas vidas de cabeça para baixo. A
afirmação de Ki-taek de que é melhor “não ter plano” é um diagnóstico da vida
na Coréia do Sul após a reestruturação neoliberal: quando os trabalhadores são
atomizados e isolados, eles perdem a capacidade de planejar com antecedência,
de se sentir seguros e de identificar significado e propósito em suas vidas.
Cedo ou tarde, alguns deles atacam.
O filme foi recebido positivamente na Coréia do Sul, onde
uma série de questões sociais, como gentrificação desenfreada, “revitalização”
urbana em bairros de baixa renda, poluição do ar, aumento dos preços dos
alimentos e da habitação e insegurança no trabalho, geraram um sentimento de
traição entre muitos jovens. Segundo um estudo
de setembro de 2019, apenas 23% dos jovens de vinte e poucos anos da classe
média baixa para baixo afirmaram estar otimistas de que sua qualidade de vida
melhoraria.
Nesse contexto, não surpreende que o público sul-coreano
reconheça a hipocrisia de uma situação em que as pessoas são instruídas a “ter
um plano”, mas não recebem um caminho claro para a estabilidade. O fato
de Parasita também ter se saído tão bem com o público do
Ocidente sugere que as condições descritas em Seul não estão tão distantes da
realidade das pessoas ao redor do mundo.
SOBRE O AUTOR
Max Balhorn é estudante de doutorado na Universidade Chung-Ang, em Seul, onde está pesquisando a história ambiental da Coréia do Sul no pós-guerra.
SOBRE O AUTOR
Max Balhorn é estudante de doutorado na Universidade Chung-Ang, em Seul, onde está pesquisando a história ambiental da Coréia do Sul no pós-guerra.
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