sábado, 15 de fevereiro de 2020

Hoje encontrei um branco

Bilionários africanos
O profundo enraizamento do pensamento racista dominante no Brasil
José Eduardo Agualusa

Lendo “Essa gente”, o novo romance de Chico Buarque, dei com uma passagem que me despertou a atenção, quando o narrador, Duarte, um escritor em crise existencial e criativa, comenta a forma como os escritores brasileiros descrevem a raça dos seus personagens: “É curioso que num país onde quase todo o mundo é preto ou mestiço, autor nenhum escreveria “hoje encontrei um branco…”, ou “um branco me cumprimentou…”, ou “o sargento Agenor é um branco bonito de presumíveis quarenta anos, se bem que os de sua raça…”.

Chico Buarque, ou Duarte por ele, tem toda a razão: os escritores brasileiros tendem a racializar apenas pessoas de origem africana. Por sinal, a maioria.

Os leitores brasileiros incorrem num raciocínio semelhante. Na literatura que se faz em Angola, Moçambique, e até mesmo na África do Sul, país que tem uma comunidade de eurodescendentes relativamente vasta, os escritores quase nunca fazem referência à raça dos seus personagens, a menos que estes se destaquem da larga maioria por serem brancos, mestiços ou indianos. O leitor brasileiro, contudo, tende a assumir que determinados personagens, cuja raça não é referida, são de origem europeia. Conversando com diversos escritores africanos, vários me deram conta de terem sido surpreendidos por leituras equivocadas dos seus romances, decorrentes deste olhar estranhamente viciado.

Digamos que o narrador de um determinado romance seja um piloto aviador, um cirurgião respeitadíssimo, um empresário proveniente de uma antiga família da alta burguesia de Luanda, dessas que se formaram e enriqueceram, a partir do século XVII, à custa do tráfico de escravos. Caso o escritor não refira a raça do mesmo, descrevendo-o apenas, vamos supor, como “um homem alto, elegantíssimo, com uma barba rala, grisalha e cabelo cortado rente”, o leitor brasileiro logo partirá do princípio de que se trata de um sujeito branco.

Não falei em pilotos por acaso. Certa ocasião, num voo de São Paulo para Luanda, assisti à alegre surpresa de um casal de cariocas, afrodescendentes, ao perceberem que o avião da companhia aérea angolana em que iríamos viajar seria tripulado por um piloto negro. “Você viu?!”, comentou a mulher para o marido: “o piloto é negro!”. Naturalmente, a maioria dos pilotos angolanos é negra, como são negros os cirurgiões, os cientistas, ou os empresários.

Há poucos dias entrevistei um político angolano, neto do famoso Rei Ekuikui II, que tem uma estátua de três metros de altura na cidade do Bailundo, no planalto central de Angola, onde eu próprio nasci. “Tive uma avó branca”, disse-me o neto de Ekuikui II. Fez uma pequena pausa e acrescentou: “Era escrava do meu avô.”

Numa próxima crônica contarei como Ekuikui II teve escravos brancos. Acho uma boa história. Se eu a contasse num romance, não detalhando a raça de Ekuikui II, arriscava-me a que os leitores brasileiros não compreendessem nada.

Observações como a de Duarte traduzem bem o profundo enraizamento do pensamento racista dominante no Brasil. É possível erradicá-lo? É, mas acho que levará ainda uma ou duas gerações. Ou mais.

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