"Aproximar-se desta legião de insanos é flertar com o perigo de ser consumido." |
Fernando Horta: O perigo de dois erros de avaliação
Opera Mundi
Já passou da hora de explicarmos Bolsonaro como uma 'fraude' retórica: o fascismo é forte porque realmente acredita na monstruosidade que defende
Esta semana, duas diretrizes surgiram na mídia a respeito da estratégia do Partido dos Trabalhadores para os próximos anos. Uma, advinda de uma palestra do economista Marcio Pochmann em Porto Alegre, em que o presidente da Fundação Perseu Abramo argumenta essencialmente que há mudanças estruturais na sociedade brasileira que inviabilizam a continuidade dos discursos sobre o trabalho conforme tínhamos nas décadas de 1970 e 1980 e, por conseguinte, “estamos com a retórica envelhecida”. A segunda diretriz parece vir diretamente do presidente Lula que busca “se aproximar” do eleitorado “evangélico” dando espaço para criação de movimentos neste sentido. Creio que as duas posições estão erradas, e pelos mesmos motivos.
A fala de Pochmann vem embasada, ao que tudo indica, em alguns dados demográficos, espectro eleitoral, PIB, composição orgânica do PIB e etc., e aponta para uma “mudança e uma sociedade industrial para uma sociedade de serviços”. Ainda segundo Pochmann, esta mudança seria de tal modo profunda que estaria provocando uma ruptura nos padrões de fala e entendimento entre os estratos sociais. Daí a conclusão de que “estamos com uma retórica envelhecida”. Trocando em miúdos, o que uns falam, os outros não entendem... e vice-versa.
Por outro lado, o presidente Lula, guiado pelo dado de que os “evangélicos” foram a principal força eleitoral de Bolsonaro tem defendido uma aproximação com estes grupos. Primeiro, em tom de brincadeira, dizendo-se com um “jeitão de pastor”, e, mais recentemente, dando linhas de ação política efetivas para que a esquerda “dispute” este eleitorado. Na compreensão de Lula, a disputa política pragmática se dá buscando achar “pontos de contato” entre as posições do partido e “os evangélicos”. Isto leva necessariamente à busca de um “denominador comum” em que a necessidade de ceder em pontos essenciais da posição política original de qualquer um dos lados é diretamente proporcional à força política do outro. Assim, a postura política do presidente, novamente apela para a sua principal característica: a capacidade de negociar e conciliar.
Como afirmado no início as duas posturas contém, no meu entendimento, erros graves e de consequências perigosas. Ambas as visões contém um erro grande de avaliação e outro de estratégia.
A fala de Pochmann parte do pressuposto da “grande mudança” da sociedade. O tamanho e o impacto desta mudança é tão mais assustador quanto menor a lente pela qual se está olhando. A verdade é que as sociedades mudam o tempo todo. Entre 1850 e 1860 vivemos uma mudança das formas de trabalho (do escravismo clássico para o trabalho imigrante servil ou assalariado), por exemplo. No final da década de 1880, vimos o fim formal da escravidão. Na década de 1930 e 1940, a sociedade brasileira viveu uma “mudança” de seu caráter rural para o urbano. Nas décadas de 1950 e 1960, os processos intensos de industrialização. E então vieram o empobrecimento das décadas de 1980 e 1990, a globalização do final do século. As revoluções nos transportes e comunicações, e tudo mais o que você puder imaginar neste meio que gere transformações no tecido social podem ser elencadas.
Há que se perguntar, qual é a diferença substancial aqui? Se do ponto de vista do economista elas são tão profundas a ponto de inviabilizar a comunicação política, do ponto de vista do historiador é um fenômeno comum a toda história. Ademais, dado que não existe cisão completa entre os tempos e as épocas, estas mudanças guardam disputas de sentido e significação que operam em nível epistemológico e que criam padrões completamente imprevisíveis de continuidades e rupturas. Dito de outra forma, estamos sempre mudando e dado que não há um indivíduo que nasça total e absolutamente da mudança ou um que sobreviva em completa oposição a ela, a ruptura narrativa apregoada por Pochmann inexiste em si mesma, e só pode ser defendida pela lógica da democracia econômica, a que vamos retornar mais tarde.
A este primeiro erro de avaliação, Pochmann incorre num erro lógico de estratégia. Ora, se precisamos vencer eleitoralmente e as pessoas não nos entendem, “estamos com a retórica envelhecida”. Veja que a “retórica” para Pochmann é uma ferramenta de comunicação apenas, e não uma forma de construção simbólica do mundo. A retórica, da forma usada pelo economista, é uma forma de retratar o mundo, tendo valor utilitário comunicativo. Neste sentido, se “trocarmos a nossa retórica” e nos fizermos entender, talvez ganhemos votos. O fato é que, em realidade, a retórica tem um papel CONSTITUTIVO no mundo. Eu sou aquilo que digo e que faço. “Adequar retórica” tem um papel perverso no mundo atual. Sem esta compreensão, perde-se a principal razão, por exemplo, da eleição de Bolsonaro: ele é fiel ao que diz. Ele realmente acredita nas imensas besteiras que verbaliza, e isto lhe confere legitimidade tal qual o presidente Lula experimenta quando fala do mundo do trabalho e da pobreza. “Adequar retórica” significa politicamente abrir mão de legitimidade, e, socialmente, incorrer em perigosa desconstrução de si mesmo. E estes dois pontos, no exato momento de luta contra o fascismo, são erros imensos que foram feitos da mesma forma nos anos 1920 e 1930 por liberais e mesmo socialistas.
A posição do presidente incorre também nos mesmos problemas. Primeiro um erro de diagnóstico: a vitória de Bolsonaro não se deveu aos “evangélicos”. Deveu-se ao uso deturpado das ferramentas de comunicação que as leis e o Estado brasileiro fizeram pouco caso em combater. O termo "evangélico” é, inclusive, um imenso erro. O neopentecostalismo de malafaias e felicianos é um caso de charlatanismo e, portanto, de polícia e não de política. Inúmeras comunidades religiosas sentem-se profundamente incomodadas em terem o termo evangélico associados a este tipo de prática. O que Martinho Lutero defendia já no século XVI, por exemplo, é diametralmente oposto ao que pregam os líderes do neopentecostalismo de mercado nos dias de hoje.
Então alguém poderá dizer que é apenas uma questão de “nomenclatura” e que, afinal, “precisamos falar com esta gente”. E este é o verdadeiro erro. Aproximar-se desta legião de insanos é flertar com o perigo de ser consumido. A forma do negócio destas igrejas não é nova. Nos aos 1950, o primeiro grande nome a surgir com a retórica anticomunista, misturando o pedido de “doações” e constituindo-se um milionário religioso com influência política foi Billy Graham, nos EUA. Estas figuras, como atualmente Kenneth Copeland, foram barradas da política norte-americana por força de legislação. Lá, para serem políticos, eles precisam abrir mão de suas isenções fiscais, e isto se torna um péssimo negócio.
O modelo deste neopentecostalismo de mercado é usar o dinheiro dos impostos não pagos (e, portanto, dinheiro público) para aturdir a mente de pessoas com discursos preconceituosos e garantir a estas almas que o QUE ELAS JÁ PENSAM tem suporte numa determinada leitura da Bíblia. Diferentemente do luteranismo, calvinismo e etc. estes novos “evangélicos” não criaram nenhuma forma de compreensão do mundo ou das escrituras, mas parasitam a mentalidade preconceituosa de milhões de pessoas, retirando delas dinheiro e apoio político que usam para tornar o país um poço de intolerância, violência a incompreensão. O que o presidente talvez se recuse a compreender é que as pessoas que participam deste tipo de organização o fazem EXATAMENTE pelo caráter violento e preconceituoso delas. Exatamente por elas serem contrárias a tudo o que a esquerda sempre defendeu. Ou seja, não há aproximação viável com os grupos que elegeram Bolsonaro e se ela ocorrer, o pastor que desavisadamente aceitar perderá imediatamente o seu “rebanho”.
Infelizmente as duas posições, a de Pochmann e a de Lula partilham de uma mesma premissa. A premissa que é central para todo economista e que foi a linha construtora do fazer político do presidente desde o final do período militar no Brasil: a ideia de que o eleitor é um ator racional.
O modelo do “ator racional” é uma forma teórica de estimar as ações dos indivíduos. Ele afirma que as pessoas agem baseadas nos seus interesses e portanto, numa lógica de custo-benefício. Assim, na fala de Pochmann desde que “estamos com a retórica envelhecida” não conseguimos mais nos mostrar ao público (eleitores) como tendo soluções para os problemas que o aflige. E se não temos soluções, não temos votos. Da mesma forma a fala de Lula parte deste mesmo condicionante mudo. Ocorre que uma das características do século XXI é a emergência de ferramentas e padrões sociais de ataque a qualquer racionalidade. Daí o ressurgimento do fascismo, por exemplo.
Como explicar que trabalhadores votaram em peso em políticos que AFIRMAVAM antes de eleitos que destruiriam as proteções ao trabalho, a aposentadoria, as legislações contra precarização e etc.? Como explicar, pelo modelo do ator racional, que pequenos empresários marcharam em peso contra um governo que mantinha o poder de compra da classe média que, em última instância, era o que sustentava os seus próprios negócios? Como explicar que Witzel e Bolsonaro tiveram expressivas votações entre as populações negras e periféricas mesmo quando eles verbalizavam o aumento da violência policial que – como mostram os números – cai em maior peso sobre os jovens negros e de periferia?
É preciso que se abandone o modelo de ator racional como forma de organização da estratégia política. Foi exatamente por terem entendido esta mudança que Mussolini e Hitler conseguiram se firmar como os líderes políticos tirânicos que foram. Foi necessário duas guerras mundiais para conseguirmos recompor o mundo. O ataque que toda a direita do mundo faz aos jornalistas e às universidades não é gratuito e nem é porque eles “são contra a cultura”. O que está em marcha no mundo hoje é uma desestabilização dos controles epistemológicos da informação e que leva à ruptura do modelo do ator racional. Isto acontece hoje, com as redes sociais, de forma muito semelhante ao que aconteceu nos anos 1920 e 1930 com o rádio. A ruptura com os monopólios da informação (seja pela ruptura com seus meios ou suas hierarquias de sentido) provoca uma proliferação de falas que confunde e atordoa o cidadão comum. O neurocientista Miguel Nicolelis, por exemplo, se vê TODOS OS DIAS confrontado em sua legitimidade por pastores e blogueiros cujo conhecimento sobre os temas de confronto é algo próximo a zero.
O ministro da educação ser um semianalfabeto, mal-educado e incompetente não é a causa da crise que enfrentamos na educação. É uma consequência da alteração dos controles epistemológicos e da abrangência social dos discursos informados em detrimento aos desinformados que é característica do desarranjo promovido pelas novas tecnologias do século XXI. A extrema direita e seu poder financeiro entenderam isto primeiro e estão tirando proveito disto. A pergunta é: vamos fazer o mesmo?
Quando defendi há algum tempo que o presidente Lula não saísse da prisão buscando a jugular de Bolsonaro foi exatamente para não jogar o jogo dos liberais naquele momento. Precisamos retomar apoio político, mas isto não significa “adequarmos retórica”. Muito pelo contrário, em ambientes polarizados, quem defende aproximação com o “centro”, morre politicamente. O livro clássico de Anthony Downs, de 1957, em que desenvolve a ideia de centro eleitoral como o local em que as preferências de uma maioria converge, não mais significa o “centro” no espectro ideológico quando estamos em sistemas de altíssima polarização, como o atual. Em realidade, o estudo dos espectros políticos e suas votações nas décadas de 1920 e 1930 na Europa mostra o que vimos em 2018-2019 no Brasil. Os partidos de centro sendo engolidos por discursos de extrema direita. Serra, Aécio e Alckmin viraram história, enquanto a esquerda está tendo que lidar com Bolsonaro, algum “capitão” de alguma coisa e o “pastor” fulano de tal. Neste contexto, apelar para uma aproximação com o centro inexistente é suicídio político.
É preciso trazer o centro para a esquerda, e isto só se faz com legitimidade retórica, representação orgânica e a luta pela recomposição epistemológica da informação. Sem um jornalismo livre e plural, e sem o papel das universidades públicas e independentes como divisor de águas entre o discurso ignorante e o informado, tudo o que as novas tecnologias da informação fazem é trazer o caos e a desinformação que destroem qualquer noção de democracia.
Já passou da hora de adotarmos as leis que proíbem que quem tem isenção fiscal concorra a cargos eleitorais. Esta foi uma defesa que os EUA, por exemplo, criaram ainda no século XIX.
Já passou da hora de explicarmos Bolsonaro como uma “fraude” retórica. O fascismo é forte porque realmente acredita na monstruosidade que defende e aplica.
Já passou da hora de acharmos que ainda há um “centro político” com qual podemos nos acertar e que para isto precisamos “adequar a retórica”.
É hora de dizer quem somos. O que fazemos. O mundo que queremos.
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