domingo, 2 de fevereiro de 2020

Pequim parece cidade-fantasma após surto de coronavírus, relata brasileiro


[RESUMO] Professor brasileiro que atualmente leciona na China narra suas impressões acerca da vida na capital do país que, em meio a medidas de segurança, parece uma cidade-fantasma após a eclosão do surto de coronavírus originado em Wuhan.
Na cantina universitária, não há quase ninguém. Sento-me numa mesa sozinho, mas logo vêm duas funcionárias da cozinha, sentam-se na minha frente, uniformes brancos e máscaras, alegres e simpáticas como boa parte do povo aqui. Nos cumprimentamos, a que está diante de mim arranca de uma vez sua máscara, reclamando que o elástico machuca a orelha, quase num gesto de desacato. Riem muito.

Entendo tudo, pois sofro do mesmo incômodo. Sinto orgulho de compartilhar a mesa com as camaradas da cozinha. Quase ninguém, contudo, testemunha esse encontro.

No metrô, numa plataforma espantosamente semivazia, de 11 passageiros que embarcam apenas dois não possuem máscara. “Isso porque não encontraram à venda, estoques esgotados”, comenta um amigo. Se a poluição do ar já levou parcela considerável dos cidadãos de Pequim a portarem máscara, o coronavírus de Wuhan generalizou o uso.

O alarme foi dado em 31 de dezembro passado, nesta capital da província de Hubei, com casos graves do que parecia surto de pneumonia. Detectado um novo vírus, a epidemia se expandiu rapidamente. Até 29 de janeiro, a China confirmou 170 mortes e 7.700 pessoas infectadas. Em torno da área de Wuhan, o governo praticamente confinou mais de 50 milhões de pessoas. Em Pequim, também, há restrições ao acesso a lugares de grande público.

A ironia é que a qualidade do ar tem estado muito melhor em Pequim do que foi há poucos anos. O sol desponta no inverno, coisa que era rara até recentemente, mas não há quase ninguém nas ruas para usufruí-lo. Capital de quase 24 milhões de habitantes, Pequim parece ter se tornado uma cidade-fantasma.

Onde está a turma de aposentados do tai chi chuan na pracinha aqui do bairro? Onde as mães e avós habituais nas praças, as crianças soltas no alarido típico das manhãs frias que antecediam o Ano-Novo lunar (25 de janeiro)?

Onde a mulher da vendinha, aquela que mantém seu negócio aberto até às 23h30, dona de olhar triste e sorriso belo, sempre a ver uma telenovela que parecia sem fim numa pequena TV erguida entre bananas e mexericas?

Enquanto isso, sigo no passo da multidão que ora se recolhe. Jamais aprenderei a cochilar, como os chineses fazem, nos vãos mais inusitados da cidade. Onde, Pequim, você de fato se esconde? No parque das “Montanhas Perfumadas” (Xiangshan), aqui nos arredores do extremo noroeste da cidade? Colinas extremamente belas na floração do outono, agora vazias, que serviram, durante a guerra de libertação nacional e a revolução popular, de refúgio para setor importante do Partido Comunista.

Seria no outro ponto extremo, a sudoeste, no parque arqueológico de Zhoukoudian? Mas ninguém mais parece, nesta megalópole, se importar com o “elo perdido” da cadeia evolutiva de nossa espécie. E, assim, presenciei, no início deste mês, um vazio no museu e no parque do Homo erectus pekinensis, muito antes da epidemia disparar.

Estávamos a cerca de 50 km do centro de Pequim, ainda no território da cidade, já na altura do sexto e último anel rodoviário que a envolve — são seis anéis que servem de referência geográfica para suas duas dúzias de milhões de moradores. Já poucos visitantes se atreviam ao museu do Homo pekinensis e ao parque amplo das escavações que começaram ali por volta de 1920 e se estendem até hoje. O restaurante popular do bairro, este sim, parecia bem mais animado.

No meio de uma quase cidade-fantasma, é incrível a rede de solidariedade que se estabelece. Estão proibidas expressamente visitas à Cidade Proibida, bem como a museus, parques e à Biblioteca Nacional. Acesso ao campus da Universidade de Pequim está vetado, por ora, a visitantes externos (para se ter ideia, eram cerca de 2.000 visitas agendadas, em média, por dia).

Se você possui cartão, pode ingressar, desde que passe por check-in de temperatura corporal na portaria. O calendário escolar de reinício das aulas foi adiado em todas as escolas, inclusive universidades, por tempo indeterminado.

Assim como prolongou-se o feriado do Ano-Novo lunar para retardar retorno e trânsito da população. A data é a grande festa chinesa, a mais tradicional do país, na qual os cidadãos se reúnem com seus parentes, o que desencadeia o maior movimento migratório em torno de um só evento no mundo. As medidas podem parecer excessivas para quem está do outro lado do globo, mas são necessárias em função da escala demográfica considerada e da imensa população chinesa: quase 1,4 bilhão de pessoas.

Falei em solidariedade. Ela me tem sido comprovada, diariamente, pelos contatos e mensagens que recebo de colegas e alunos. Ela já está presente sem precisar dizer. Bastam entreolhares sobre as máscaras. Sinais amigos acionados para que recebamos, com toda a alegria que o novo ano promete, a aluna Huang-Olívia, única moradora de Wuhan na turma para quem dou aulas.

Volto dias depois à cantina. Das duas funcionárias, uma delas senta de novo à mesa comigo. Sobram espaços e parece que já formamos um time. O refeitório continua vazio. Acabo meu almoço antes dela. Levanto com minhas coisas e bandeja. Ela faz menção de se levantar para recolher minhas sobras. “Não, camarada, absolutamente”, eu aceno. Cuido eu de separar meu pequeno fardo. “Você merece, mais que todos os frequentadores, comer em paz”, digo em gestos. Sorrimos cúmplices.

Ah, mulheres chinesas anônimas, eu as admiro mais que tudo neste país! Também as que vêm bem tarde da noite coletar o lixo reciclável e passam no silêncio de suas motobikes elétricas e completam esse bailado de veículos que se vê nas pontes e avenidas.

Agora vivo num quase deserto de asfalto. Cadê a turma? Onde, Pequim, você se esconde?

Não desisto. Como os chineses, em geral. Não desisto e sonho e peço e quero: a volta da mulher das castanhas, vendedora ambulante, com seu sorriso tão largo quanto o deserto da Mongólia. Chegará com seu carrinho elétrico? Mostrará seu código digital para que eu pague no celular? (cada dia mais evita-se qualquer pagamento em dinheiro por aqui; o papel-moeda, um pouco como jornal impresso, vai virando coisa do passado).

Pois é certo que a mulher das castanhas virá. Com suas rugas curtidas no vento arenoso e frio do extremo norte. Com suas mãos fatídicas no preparo de tudo. Com sua alegria altaneira e simples. Virá, que é certo. Já não trará as castanhas de aroma inesquecível que preencheram meu outono e parte do inverno. Virá com as frutas da nova estação, que o Ano-Novo lunar, fustigado pelos maus eflúvios de um mercado de Wuhan — morcegos, serpentes, humanos, qual dessas espécies a pior? —, assim mesmo é capaz de anunciar.

Pois os chineses se antecipam em quase tudo em meio à longa espera que também possuem como senha. Pois, aqui, o Ano-Novo lunar é mais que tudo a celebração da chegada da primavera. A mulher das castanhas, eu sei, colhe, neste instante, em pleno deserto da Mongólia interior, as frutas que trará logo mais em seu carro inimitável.

A primavera em Pequim promete melhores ares, melhores luzes. E aqui vai estar, logo mais, a mulher das castanhas. Não custa crer. Nada custa esperar.

Francisco Foot Hardman é professor titular do Instituto de Estudos da Linguagem da Unicamp e dá aulas na China a convite da Escola de Línguas Estrangeiras da Universidade de Pequim.

Nenhum comentário:

Postar um comentário