terça-feira, 11 de agosto de 2020

Duplipensar e dissonância cognitiva

Nilson Lage

Resposta ao questionário de um secundarista (do Instituto Federal de Santa Catarina).

O duplipensar é um dos recursos da novilíngua concebida pelo inglês George Orwell em seu romance “1984”; reproduz observações do escritor sobre os discursos de poder do século em que, como teorizou o alemão Martin Heidegger, alguns homens convencem os demais a agir contra seus próprios interesses. Um tempo que ultrapassou o ano 2000 e continua sendo o nosso.

A maneira corrente do duplipensar reflete um fenômeno mental descrito pelo psicólogo americano León Festinger como “dissonância cognitiva” – a capacidade de conviver com duas visões contraditórias da mesma coisa, reconhecendo e, ao mesmo tempo, aceitando-as, ambas, sinceramente.

Defender a liquidação das instituições democráticas para salvar a democracia ou a morte rápida do maior número de pessoas em uma pandemia para que a vida volte depressa ao normal são, na atualidade, variantes de duplipensar, tanto quanto apoiar a venda de bens estratégicos nacionais a potências estrangeiras como postura nacionalista. Na mesma linha vai a tese de que os pobres ficarão menos pobres se os ricos ficarem mais ricos porque estes, assim, distribuirão mais dinheiro entre os pobres; no caso, a justificativa parte do princípio de que a desigualdade será mínima se for máxima o que é um aforisma duplipensante.

O duplipensar se sofistica quando explora a ambiguidade entre o “não-ser” e o “anti-ser”. Por exemplo, o não-ser do branco é qualquer uma das outras cores, mas o anti-ser do branco, seu real contraditório, é o negro, porque o branco é a luz plena e o negro a ausência de luz.

Apliquemos isso à sociedade, ainda tomando os efeitos da radiação de luz como referência. Temos um conjunto de brancos de ascendência europeia, descendentes de indígenas de tribos variadas, oriundos de reinos africanos com distintas etnias, além árabes e asiáticos e os mestiços, hoje maioria. Se dividirmos esse todo em “brancos cristãos” e “negros”, como pretendem, criaremos uma representação mental duplipensante, em que a categoria dos “brancos cristãos” sempre prevalecerá porque a outra, constituída de aparências, crenças e histórias obviamente divergentes, dificilmente agirá ou parecerá coesa.

Outro artifício relacionado ao duplipensar é o “nem-nem” em que se aceitam como legítimos dois modelos incompatíveis e se defende um terceiro, sem especificá-lo; o beneficio, ainda aí, irá para o modelo dominante.

A novilíngua propõe recursos além do duplipensar. Destacam-se dentre esses o cancelamento ou negação do inconveniente, incluindo coisas e figuras do passado (a revisão da narrativa histórica); a manipulação verbal ou visual (a espetacularização) de símbolos relacionados a sexo e violência; e a redução de conceitos abstratos e complexos a tipos simplificados e de utilidade prática, criando um pragmatismo geral do mundo em que tudo se explica e se conforma.

Deformam-se por esse método ideais generosos como democracia, liberdade, educação, solidariedade ou realização humana. Não se trata, aí, de duplipensamento, mas de estreitamento de horizontes mentais e rejeição da racionalidade.

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