Luis Fernando Verissimo
O velho hábito brasileiro de deixar pra lá que as coisa se ajeitam se solidificou
Curiosa palavra, “mercê”. Estar “à mercê” de algo que você não pode controlar, ou de alguém com o poder de decidir sua vida. Depender de algo ou de alguém sem reação possível. Estar entregue ao capricho – ou à benevolência, ou à maldade – de outro. Estar indefeso diante da vontade alheia, ou das forças da Natureza.
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Faça um inventário de tudo que tem você à sua mercê, a começar pela sua própria saúde. Você é refém dos seus órgãos, não manda em nenhum deles. Você está à mercê de todos os perigos da cidade em que vive, quanto maior a cidade, mais perigosa. Você está à mercê do trânsito, do possível galho de árvore que o vento derruba na sua cabeça, do assaltante, do etc. Viver normalmente é estar à mercê do que pode acontecer.
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No Brasil dos últimos tempos, nos descobrimos à mercê de outra coisa, de uma síndrome que se aproxima de um vício nacional. Os desmoronamentos com mortes em Mariana e Brumadinho e os dez meninos mortos no Rio não podem ser atribuídos à fatalidade, que tudo desculpa. Houve descaso, negligencia, má administração, decisões erradas – enfim, culpados.
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Vivemos à mercê do velho hábito brasileiro de deixar pra lá que as coisa se ajeitam (em Mariana não se ajeitou nada ainda). Este caso – talvez pelo fato de as tragédias terem sido tão próximas umas das outras, incluindo aí a terrível morte do Boechat – pode mudar alguma coisa, mas não aposte nisso. O velho hábito se solidificou. Afinal, são décadas de predomínio do lucro sobre a segurança e indiferença pelo social. E nós à mercê da incompetência.
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