quarta-feira, 31 de julho de 2019

Bolsonaro não é democrata e não mudará; método é minar instituições



Ação de Maia fortalece freios e contrapesos; Dodge se omite

Kennedy Alencar

Ao desqualificar documentos e testemunhos oficiais sobre crimes da ditadura militar de 1964, chamando de “balela” o trabalho da Comissão da Verdade, o presidente Jair Bolsonaro falseia a história. Mente para tirar credibilidade das instituições.

É a mesma estratégia que ele usa em relação à imprensa. Cotidianamente, tenta minar a credibilidade de jornalistas e dos veículos de comunicação, porque assim fica mais fácil tomar medidas autoritárias.

Bolsonaro é um autocrata. Não é um democrata. Ele é assim e não vai mudar. Por trás do despreparo e da ignorância em assuntos de Estado, há método no comportamento presidencial. Caótico, mas há.

Ao tirar credibilidade da Comissão da Verdade, indagando quem acredita nas conclusões de uma investigação feita por um órgão de Estado entre 2012 e 2014, Bolsonaro vende uma mentira histórica que abre caminho, por exemplo, para que a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, negue mais de mil pedidos de reparações de vítimas da ditadura.

Bolsonaro tenta reescrever a História do Brasil por meio de mentiras e leviandades, o que afeta a memória do país e a cabeça das gerações mais jovens que não viveram a ditadura. Afeta também o que pensarão as gerações futuras. Joga na divisão do país.

É uma guerra cultural, como admitiu ontem numa rede social um dos filhos do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro, citando a recomendação do escritor de extrema-direita e guru ideológico dessa filosofia de porões da ditadura.

A estratégia de guerra cultural, com fake news e estímulo à intolerância no debate público, é um método de populistas de direita e extrema-direita mundo afora, como faz, diariamente, Donald Trump, presidente dos Estados Unidos.

Esse método enfraquece as democracias. Ao normalizar absurdos no Brasil, nos EUA, na Hungria, líderes políticos minam as instituições democráticas. Normalizar absurdos é como as democracias morrem.

Ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça e primeiro coordenador da Comissão da Verdade, o advogado Gilson Dipp lembrou ontem em entrevista à jornalista Tatiana Vasconcellos, no “Estúdio CBN”, que o órgão que investigou crimes do Estado brasileiro foi criado pela lei federal 12.528 de 2011. Ouça a entrevista de Dipp e do ex-juiz e comentarista da CBN Wálter Maierovitch.

A Comissão da Verdade foi a etapa final de um processo longo de reparação histórica e civil que começou no governo Fernando Henrique Cardoso. As administrações Lula e Dilma deram seguimento à tarefa.

Em 1995, FHC pediu ao então ministro da Justiça, Nelson Jobim, e ao chefe de gabinete da pasta, José Gregori, que dessem o pontapé legal nesse processo de indenização às vítimas da ditadura e da busca por esclarecimentos para as torturas, assassinatos e desaparecimentos. Esses crimes foram cometidos por agentes do Estado brasileiro. Foram crimes da ditadura militar de 1964, período histórico abjeto sobre o qual os militares nunca fizeram um mea culpa.

Dipp lembrou que houve negociação com as Forças Armadas para criar a Comissão da Verdade. Mas, ao final dos trabalhos, militares não engoliram as conclusões da Comissão da Verdade e jogaram para derrubar Dilma Rousseff do poder. O fator militar teve peso, entre outros, no impeachment da presidente petista.

Para não normalizar absurdos, as instituições brasileiras precisam reagir por meio dos freios e contrapesos do sistema democrático. Só assim poderão ser contidos arroubos autoritários e medidas ilegais do governo Bolsonaro.

O STF (Supremo Tribunal Federal) tem de reagir.

O Congresso Nacional também. Quando Rodrigo Maia (DEM-RJ) divulga nas redes sociais uma mensagem em que apoia o direito constitucional de sigilo da fonte, numa menção clara às ameaças do governo Bolsonaro ao jornalista Glenn Greenwald, o presidente da Câmara usa os freios e contrapesos. Maia contribui para fortalecer a democracia no país.

A imprensa e as entidades da sociedade civil também precisam reagir, como fez a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a ABI (Associação Brasileira de Imprensa). Ouça a entrevista de Felipe Santa Cruz, presidente da OAB, dada ontem aos jornalistas Roberto Nonato e Évelin Argenta.

O Ministério Público Federal tem de reagir. Ontem, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão divulgou nota em que disse que “toda pessoa que tenha conhecimento do destino ou paradeiro da vítima e intencionalmente não o revele à Justiça pode ser, inclusive, considerada partícipe do delito”.

Foi resposta à afirmação cruel de Bolsonaro de que poderia contar ao presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, o que acontecera ao pai dele, Fernando Santa Cruz, um desaparecido de 64.

Mas, nesse caso, quem poderia por atribuição legal investigar e eventualmente denunciar o presidente da República por crime comum é a procuradora-geral da República, Raquel Dodge. Até ontem, não se tinha notícia de ação de Dodge, que está interessada em ser reconduzida ao cargo por Bolsonaro.

Ao contrário da ação de Maia, a omissão de Dodge é uma falha do nosso sistema de pesos e contrapesos. Ela enfraquece a democracia.

O tempo está nublado em Brasília. Não se veem dias ensolarados adiante. A vida é dura, e cada autoridade pública tem de escolher como entrará para a História.

Ouça o comentário feito ontem no “Jornal da CBN – 2ª Edição”:


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