Parte dos eleitores arrependidos de Bolsonaro quer mais
radicalismo
Isabela Kalil: Bolsonarismo é um fenômeno que transcende a figura de Bolsonaro e tem paralelo com terraplanismo
Doutora em Antropologia Social, Isabela Oliveira Kalil dedica-se há seis anos a estudar o desenvolvimento de movimentos conservadores no Brasil. A equipe de pesquisadores coordenada pela professora no Núcleo de Etnografia Urbana da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) observa e entrevista presencial e virtualmente militantes de direita, para identificar como pensam, agem e se expressam os conservadores brasileiros. O que uniu, nas eleições de 2018, estas pessoas foi o apoio à candidatura de Jair Bolsonaro, eleito presidente com 57,8 milhões de votos.
Se as pesquisas de opinião permitem uma visão quantitativa
de como vai a popularidade Bolsonaro - em queda desde o início do ano -, o
estudo etnográfico de Isabela, concentrado na região metropolitana de São
Paulo, oferece dados qualitativos sobre como se movem os apoiadores do
presidente na região mais populosa do Brasil.
Antes mesmo da vitória de Bolsonaro, emergiram da pesquisa
perfis de bolsonaristas tão diversos quanto mulheres em busca do empoderamento
e militares; ou jovens de periferia e homossexuais conservadores. A conclusão
da primeira fase da pesquisa foi de que a imagem de Bolsonaro foi construída
como facetas de um caleidoscópio: ela se moldou ao olhar de quem via.
Com a caneta da Presidência na mão, porém, a história é
outra. Isabela identificou eleitores de Bolsonaro que, com sete meses de
gestão, estão insatisfeitos. Os arrependidos concentram-se em dois grupos:
jovens que se decepcionaram com a condução da área da educação e chegaram a ir
aos protestos convocados pela esquerda em maio; e homens na faixa dos 40 anos
de idade, que esperavam mais radicalismo.
Nesta entrevista ao Valor, a antropóloga detalha
o humor dos simpatizantes de Bolsonaro. Formada pela Universidade de São Paulo
(USP), Isabela atuou como pesquisadora visitante na Universidade de Columbia,
nos Estados Unidos, e integra o fórum Sexuality Policy Watch, que reúne
pesquisadores de quinze países.
Valor: A senhora acompanhou o início dos
movimentos de apoio a Bolsonaro. Como se comportam agora, com Bolsonaro no
governo?
Isabela Kalil: Os movimentos sociais que
acompanhamos se formaram nas ruas e as lideranças cresceram em manifestações e
nas redes sociais. O discurso era antistablishment. O fenômeno que vemos agora,
e do qual Bolsonaro faz parte, é de que esses líderes entraram para a política
institucional, ocupam cargos públicos. Quando isso acontece, cria-se uma
novidade. Antes, os grupos estavam nas ruas, protestando e prometendo o que
fariam se fossem eleitos. Quando eles entram no jogo político, ainda que eles tentem
manter esta postura, não é possível entregar tudo o que eles prometeram. Por um
lado há uma insatisfação das pessoas que apoiaram esses personagens porque elas
começam a achar que eles estão fazendo pouco. Alguns têm até de se explicar.
Quando o PSL se torna parte do Estado há um problema que o Partido dos
Trabalhadores (PT) também enfrentou anos atrás, quando se deparou com o fato de
que a política exigia alianças e diálogo com quem pensa diferente.
Valor: Em que situações, por exemplo, a
senhora identificou esse comportamento, de criticar quem entrou para política
institucional?
Isabela: São situações corriqueiras, como quando
uma dessas lideranças eleitas aparece em uma foto ou conversando com alguém que
não é do mesmo espectro político. Eles têm de ir para as redes sociais se
explicar. Eles vêm explicando isso de forma muito didática, dizendo que lá, no
Congresso ou na Assembleia, você tem de conversar com todo mundo, até mesmo com
a oposição. Uma parte do eleitorado esperava uma mudança política radical, que
culminaria com o fim de instituições. Grupos que acompanhamos pedem o
fechamento do Supremo Tribunal Federal (STF), do Congresso.
Valor: Como essa insatisfação se manifesta em
relação a Bolsonaro?
Isabela: Pesquisas de opinião mostram a
popularidade de Bolsonaro caindo. Isso não quer dizer necessariamente que as
pessoas estão insatisfeitas por acharem que Bolsonaro tem atitudes inadequadas
ou pouco democráticos. É o contrário. Existe uma parcela dos eleitores que
estão insatisfeitos com Bolsonaro porque ele não está se comportando
suficientemente como de extrema direita. Na visão dessas pessoas, Bolsonaro não
está entregando o projeto de extrema direita que prometeu.
Valor: Para esse grupo, o que caracteriza ser
"suficientemente de extrema-direita"?
Isabela: Eles citam expectativas de fechamento
do Congresso e se queixam muito da questão da posse e porte de armas. Esses
eleitores acham que Bolsonaro entregou muito pouco. Esperavam mais. Há uma
demanda preocupante - e pouco vista - por radicalização. Não se pode supor que
a popularidade de Bolsonaro cai só porque as pessoas estão girando para o
centro. Isso é parte do quadro e ocorre em alguns setores, mas, tendo criado
uma direita da direita, o bolsonarismo faz surgir agora uma extrema-direta da
extrema-direta.
Valor: Qual o perfil de quem agora considera
Bolsonaro moderado?
Isabela: Predominantemente masculino. São homens
com idade entre 40 e 45 anos.
"Existe uma parcela de eleitores insatisfeita porque Bolsonaro não se comporta como de extrema-direita"
Valor: Eles se identificam com alguma
bandeira conservadora específica? Que ideias ou pauta eles têm em comum?
Isabela: Para explicar esse perfil é
interessante fazer um paralelo com um outro grupo que passamos a estudar
recentemente: os terraplanistas. Eles não confiam na ciência, nas instituições.
Acham que estão sendo enganados. Vivem uma espécie de niilismo não só político,
mas em diferentes esferas.
Valor: Como a pesquisa passou, de
conservadores, a olhar para os terraplanistas?
Isabela: A questão da Terra plana diz muito
sobre a descrença em instituições e em teorias que, até alguns anos atrás,
ninguém imaginava desacreditar. Há um encadeamento de descrenças. Nossos
estudos etnográficos sobre terraplanistas surgem no contexto dos conservadores.
Eleitores de Bolsonaro, em entrevistas conosco, justificavam suas opiniões com
base em teorias conspiratórias. Percebemos um imbricamento entre fake
news e teorias conspiratórias. À medida que nos aprofundamos nessa
escuta, identificamos um pano de fundo de ideias de conspiração não só na
política.
Valor: Existe correlação entre bolsonarismo e
terraplanismo?
Isabela: Ao olhar para os terraplanistas eu
posso dizer que o bolsonarismo é muito mais do que Bolsonaro. Esse fenômeno que
a gente tem nomeado de bolsonarismo transcende o próprio Bolsonaro. Está
presente, por exemplo, no terraplanismo. Está presente também nesta crítica de
parte dos eleitores, de que Bolsonaro está sendo "frouxo", não está
entregando o que prometeu.
Valor: A senhora mencionou as armas. Foi uma
das bandeiras de campanha de Bolsonaro e ele, no início do governo, tentou
mostrar ação, com o decreto das armas.
Isabela: A questão das armas é central para
entender como se comporta um dos dois grupos de apoiadores que está agora
insatisfeito com Bolsonaro. São pessoas que votaram com a expectativa de que
Bolsonaro iria ampliar a posse e o porte de armas e, agora, acham que isso vem
acontecendo de maneira muito lenta. Ou seja, há uma parte do eleitorado de
Bolsonaro que o vê tendendo ao centro. Um exemplo do que ouvimos é: "O
capitão não está sendo suficientemente forte para entregar o que
prometeu."
Valor: Qual é o segundo grupo de apoiadores
que está insatisfeito com o desempenho de Bolsonaro?
Isabela: São os jovens. Eles mostram uma mudança
de percepção a partir do anúncio de cortes no orçamento para a educação, em
maio. Ficam inseguros. A educação vem sendo, nestes sete meses de governo, um
ponto muito sensível para quem defendeu Bolsonaro na campanha. Para os jovens,
é mais sensível do que a reforma da Previdência e do que o vazamento das
conversas do ministro da Justiça, Sergio Moro. As decisões do governo na
educação foram lidas como algo que afeta direta e negativamente o futuro deles.
Valor: Em maio, houve dois grandes protestos
de professores e estudantes contra os cortes na educação. Como isso reverberou
entre bolsonaristas?
Isabela: Houve discussões sobre participar ou
não dos protestos. E teve, sim, apoiador do Bolsonaro que foi às ruas se manifestar
contra os cortes na educação. O contra-argumento era de que os protestos eram
organizados pela esquerda.
Valor: A educação foi assunto somente entre
os mais jovens?
Isabela: Não. O tema causou impressões também
entre adultos com filhos em idade escolar ou universitária. A visão deles é
que, se queremos uma país melhor, não faz sentido cortar na educação. O que
cada um entende por "educação de qualidade" varia. Para esses pais, é
escola militarizada, "sem partido" ou religiosa. Mas o ponto em comum
é: educação de qualidade precisa de recursos.
Valor: Houve críticas aos ministros da
Educação, Ricardo Vélez e Abraham Weintraub?
Isabela: Chamou atenção o episódio em que Vélez
orientou escolas a filmarem alunos cantando o Hino Nacional. Houve um incômodo.
Quando questionei o motivo, descobri que o problema não era obrigar a criança a
cantar o Hino, mas sim filmá-las. Os pais sentiram que a privacidade dos filhos
seria invadida.
Valor: Como se deram entre apoiadores de
Bolsonaro as conversas sobre a reforma da Previdência?
Isabela: Apareceram questões como a
aposentadoria de militares e de políticos, e de que a reforma deveria atingir
esses grupos também, ser igual para todos. Mas, de uma forma geral, as pessoas
não entendem o bem o que significa a reforma. Sabem que pode ser algo positivo
para evitar que "o Brasil quebre".
Valor: O voto feminino foi importante para a
eleição de Bolsonaro. Como as mulheres que o apoiaram o veem como presidente?
Isabela: Sentem-se contempladas, porque há
figuras femininas no PSL importantes na articulação em Brasília. Essas
políticas respondem à lógica do empoderamento sem feminismo.
Valor: Quem são elas?
Isabela: As deputadas federais Carla Zambelli e
Joice Hasselmann (ambas do PSL de São Paulo). Elas estão em evidência e ajudam
a rebater as críticas de que Bolsonaro é misógino.
Valor: E Damares Alves, ministra da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos?
Isabela: Damares tem uma percepção neutra para
as bolsonaristas. Não é combativa como Carla e Joice, mas é reconhecida por agir
a favor da família e contra a violência doméstica.
Valor: Em que aspectos Bolsonaro agrada os
seus eleitores?
Isabela: As viagens internacionais fazem
sucesso. Não importa o conteúdo do que ele apresenta lá fora, mas o fato de
viajar para o exterior soa entre os apoiadores como uma atitude do presidente
defendendo o Brasil e evoca a questão do nacionalismo.
Valor: Foi possível medir reações ao fato de
Bolsonaro ter prometido indicar o filho, o deputado federal Eduardo (PSL-SP),
para a embaixador do Brasil nos Estados Unidos?
Isabela: A percepção preliminar é que, se
Eduardo for competente, os apoiadores aceitam, acham ok; mas, se Bolsonaro
estiver indicando Eduardo só por ser seu filho, não é bom.
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