Os trágicos incêndios no Ártico, que teve temperaturas passando dos 32°C, me instigaram a fazer uma sequência sobre FEEDBACKS CLIMÁTICOS. Então, lá vai...
Primeiro, o conceito. Feedbacks ou retroalimentações são mecanismos pelos quais o efeito interfere de volta na causa, amplificando-a (feedback positivo) ou enfraquecendo-a (feedback negativo). Importante: os termos "positivo" ou "negativo" não têm juízo de valor, como veremos.
Uma metáfora para facilitar o entendimento. Imagine que alguém, visivelmente nervoso, foi grosseiro com você. Dentre inúmeras possibilidades de desdobramentos, vamos falar de dois caminhos possíveis: o do "feedback positivo" e o do "feedback negativo".
No "feedback positivo", você grita mais alto, o sujeito xinga, você o ameaça, ele lhe agride, etc. O processo se amplifica e pode sair totalmente de controle.
No "feedback negativo", você mantém a tranquilidade e pede para o sujeito agir de outra maneira. Daí ele se tranquiliza, você age de maneira cordial, ele lhe pede desculpas, etc. O processo se encerra.
Então vamos lá?
1. FEEDBACK DO GELO-ALBEDO
Como se sabe o equilíbrio do sistema climático terrestre depende de um balanço de radiação que entra (solar, de onda curta, visível) e radiação que sai (terrestre, de onda longa, infravermelho).
Mas parte da radiação solar que incide sobre a Terra não é absorvida. É refletida diretamente para o espaço e sequer entra nesse balanço de energia. Essa reflexão é feita principalmente por superfícies claras: desertos, neve, geleiras, gelo marinho e mantos de gelo continentais.
A fração (ou porcentagem) da radiação que é refletida denomina-se ALBEDO. Quanto maior o albedo, menos radiação solar é absorvida. É fácil de entender se compararmos o conforto em usar uma roupa clara sob o sol, em contraste com o uso de uma roupa escura.
Mas como temos assistido, o Aquecimento Global reduz a cobertura de gelo. Geleiras em regiões montanhosas têm retraído. O gelo marinho, especialmente no Ártico, tem reduzido a cada ano, com perdas em volume da ordem de 70% no verão.
Ora, o degelo substitui uma superfície refletora por uma superfície mais escura: o solo/rocha nos continentes ou - no caso mais grave - os oceanos (que absorvem mais de 90% da radiação solar que incidem sobre eles).
Em outras palavras, o DEGELO leva à diminuição do ALBEDO da superfície, o que por sua vez aumenta a absorção de radiação solar. Com mais radiação sendo absorvida, o planeta aquece. Ou seja, o AQUECIMENTO GLOBAL se amplifica, o que amplifica a perda de gelo, e assim por diante.
2. FEEDBACK DO VAPOR D'ÁGUA
A atmosfera terrestre contém uma quantidade variável de vapor d'água cuja molécula absorve infravermelho em uma ampla gama de frequências. Em virtude da maior abundância, termina sendo o maior contribuinte para o efeito estufa natural.
Mas diferente do CO2, metano, óxido nitroso e outros gases, o vapor d'água pode mudar de fase na atmosfera (passando a líquido ou sólido). Com efeito, a partir de um determinado limite (saturação), a atmosfera não consegue reter mais vapor d'água e o excedente condensa ou sublima
A quantidade de vapor d'água que a atmosfera pode conter é uma função da temperatura. De acordo com a equação de Clausius-Clapeyron, quanto maior a temperatura, maior a pressão de vapor de saturação (a fórmula é aproximadamente exponencial).
Daí, quanto mais quente a atmosfera, mais vapor d'água ela irá conter. Estima-se que a cada 1°C de aquecimento, essa capacidade aumenta em ~6%, o que bate inclusive com as observações do aumento do conteúdo atmosférico de vapor d'água nas últimas décadas.
Mas já que o vapor d’água é um gás de efeito estufa, o aumento de sua concentração aumenta a absorção de radiação terrestre (infravermelho) pela atmosfera. Isto obviamente amplifica o aquecimento global.
Mais aquecida, a atmosfera conterá mais vapor d'água. Com mais vapor d'água, o planeta irá aquecer ainda mais (inclusive sua atmosfera). Está estabelecido o "loop".
Aliás, o feedback do vapor d'água é o mais relevante de todos na atual situação. A estimativa é que ele mais do que duplica o efeito do aquecimento causado diretamente pelo CO2.
Parênteses aqui: da próxima vez que algum babaca negacionista vier com "ah, mas nem é o CO2 o gás de efeito estufa mais importante, é o vapor d'água" como se isso fosse argumento a favor dele, esfregue o feedback do vapor d'água na cara do sujeito!
3. FEEDBACK DO PERMAFROST
O "permafrost" (ou pergelissolo) é o tipo de solo encontrado, por exemplo, na região do Ártico. Cobre grandes extensões da Sibéria e Norte do Canadá. Nele, a água está permanentemente congelada, mantendo o conteúdo do solo como se estivesse num freezer.
Nessas regiões, restos de animais de dezenas de milhares de anos atrás podem ser encontrados em altíssimo estado de conservação. É o caso da Yuka, a mamutinha de 39 mil anos, encontrada na Sibéria!
Mas o aquecimento global está derretendo partes cada vez maiores do permafrost, expondo a matéria orgânica nele contida à decomposição. Esse processo leva à emissão de diversos gases, desde os gases de enxofre (responsáveis pelo cheiro ruim) aos gases contendo... carbono
Que gases são esses? Além do CO2, o METANO, cujo potencial de aquecimento global é 34 vezes maior do que o do CO2 na escala de 100 anos (86 na escala de 20 anos!).
Essas emissões de CO2 e metano, ambos gases de efeito estufa, amplificam o aquecimento global. O aquecimento global acelera o derretimento do permafrost. Outro loop!
4. FEEDBACK DA VEGETAÇÃO
Como todo mundo sabe, a vegetação realiza fotossíntese, parte fundamental do que deveria ser um ciclo equilibrado do carbono: a fotossíntese retira CO2 da atmosfera, sendo o mesmo devolvido via respiração e decomposição.
Vale dizer que a princípio, a depender da espécie vegetal, sob condições favoráveis de suprimento de água e nutrientes, um aumento da concentração de CO2 leva a um aumento das taxas de fotossíntese.
Com efeito, isso tem permitido à biota continental sequestrar parte do carbono emitido pelas atividades humanas (estimativa é que 25% do CO2 seja capturado pelas plantas e solos, 25% pelos oceanos e 50% se acumule na atmosfera). Mas... (e é um GRANDE mas)
Mas há limites para esse feedback negativo. Os sinais já apontam que ele está dando lugar a um conjunto de feedbacks positivos que iremos chamar, por simplificação de "Feedback da Vegetação". Explicando:
A entrada do CO2 para realizar fotossíntese é feita por meio dos estômatos (aberturas microscópicas nas folhas, por onde ocorrem as trocas gasosas). É também pelos estômatos abertos que a planta perde água (evapotranspiração).
O Aquecimento Global leva ao aumento das taxas de evaporação (reduzindo a água no solo) e evapotranspiração. Com menos disponibilidade de água e/ou com perda mais acelerada, as plantas inibem a fotossíntese: fecham os estômatos ou no limite perdem as folhas por completo.
Daí, em algumas localidades ou em alguns eventos (como as secas de 2005 e 2010 na Amazônia), o que se observa é o contrário: menos fotossíntese, mesmo com mais CO2 na atmosfera. Mas no limite a coisa pode ficar pior, bem pior.
Quando a temperatura se aproxima de 40°C, as enzimas responsáveis pela fotossíntese não só já estão longe do máximo de sua eficiência como elas mudam de forma e perdem a funcionalidade. Nessas temperaturas mais altas, a fotossíntese declina.
Essas temperaturas já começam a se tornar realidade não apenas nos trópicos como no verão das latitudes médias. A redução ou o comprometimento total da fotossíntese em áreas cada vez maiores não apenas irá reverter o feedback negativo da absorção de CO2...
Irá virar o jogo para um feedback positivo totalmente desastroso. Primeiro, perde-se um mecanismo de sequestro de carbono, o que fará com que o CO2 se acumule mais rapidamente na atmosfera, mesmo que as emissões antrópicas parem de crescer.
E, num momento seguinte, com a mortandade da vegetação, o que era sumidouro de carbono virará fonte de emissão. A biota continental, ao invés de sequestrar CO2, irá emitir esse gás (e metano também), mesmo na ausência de desmatamento, incêndios etc.
5. FEEDBACK DOS CLATRATOS
Ok, este certamente é um forte candidato a ser o mais desconhecido e estranho dentre todos. Mas tem um potencial enorme de levar o sistema Terra inteiro a outro estado climático radicalmente diferente, então vamos a ele!
Primeiro, o que são "clatratos" ou "hidratos de metano"? São um composto de fórmula CH4·5,75H2O, em que moléculas de metano são encapsuladas por um arranjo de moléculas de água (arranjos dodecaédrico e tetradecaédrico nas figuras)
Eles existem no piso oceânico e a estabilidade desse arranjo molecular depende de dois fatores que são encontrados no fundo do mar: pressão alta e BAIXAS TEMPERATURAS.
Parênteses aqui: na verdade, nas fossas mais profundas do oceano, a presença de clatratos diminui, por não haver praticamente micróbios para produzir o metano.
Um aumento de temperatura favorece a ruptura desse arranjo molecular, fazendo com que a molécula de metano escape. Como o metano tem baixa reatividade química, é alta a probabilidade de ele chegar à superfície, após escapar do piso oceânico.
Já deu para entender, não é? Aquecendo as camadas inferiores do oceano, libera-se o metano dos clatratos. Este chegando à atmosfera, amplifica o aquecimento global, que irá deixar o piso oceânico ainda mais quente, liberando mais metano etc. num feedback positivo. Outro loop!
Pode parecer coisa de ficção científica. Mas o risco associado ao "feedack dos clatratos" é real. O estoque oceânico de metano é enorme e mesmo a liberação de uma fração pequena desse estoque pode ter efeito climático muito relevante. Eu sei, parece ficção científica, mas...
Mas a hipótese mais aceita para explicar a ocorrência do Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno (período mais quente da era cenozóica inteira, há 55,5 milhões de anos) é que o aquecimento tenha sido disparado precisamente a partir da desestabilização dos clatratos no piso oceânico.
O clima no PETM (Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno) ficou de 4 a 7°C mais quente do que o clima pré-PETM ou, em outras palavras, cerca de 10°C mais quente do que hoje em dia.
Ah! Detalhe... O processo de liberação dos gases que culminou com o PETM levou 19.000 anos, com um aumento da concentração de gases de efeito estufa a uma taxa aproximada de 6,2 bilhões de toneladas de CO2-equivalente/ano. Sabe quais foram as emissões antrópicas de 2018? 37,1 bi!
6. FEEDBACK DOS INCÊNDIOS
Este foi a motivação da série (incêndios no Alaska), e é bastante óbvio, na realidade...
A flamabilidade da matéria orgânica depende das condições de umidade relativa, que por sua vez depende da temperatura, e da distribuição das chuvas ao longo dos dias. Como ficam esses parâmetros com o aquecimento global?
Ora, a temperatura subirá, por óbvio. E produzirá períodos em que a umidade relativa durante as horas mais quentes do dia cai muito.
Além disso, o ciclo hidrológico está sendo alterado pelo aquecimento global, com alternância de extremos. Chuvas intensas e concentradas se revezam com longos períodos sem chuva (dry spells), justamente casados com as ondas de calor.
E isso torna as condições tristemente perfeitas para o risco de incêndio florestal crescer. Em nosso grupo de pesquisa fizemos uma análise de projeções de risco de incêndio para o norte da América do Sul e os resultados foram assustadores.
O Brasil central, o leste da Amazônia e o Nordeste - só pela questão climática, independente de outras ações antrópicas (como desmatamento) - ficam sob condições de aumento significativo dos dias no ano com risco de incêndio muito alto e extremo.
A mensagem aqui é simples: o Aquecimento Global torna os incêndios mais frequentes e violentos. Esses incêndios retiram enormes quantidades de carbono que estavam estocado na vegetação e solo e o lançam para a atmosfera, principalmente como CO2.
Essas emissões de incêndio amplificam o Aquecimento Global, que retroalimenta os incêndios, etc. Mais um loop! E o que temos assistido no sul da Europa, na Califórnia e até no Alaska corroboram com isso.
Olá. Quais desses exemplos de feedbacks podem ser considerados os feedbacks negativos?
ResponderExcluir