A Rosana Pinheiro-Machado disse ontem [com ressalva, é verdade] que o "eu avisei" seria "sintoma da vaidade política descomprometida".
Uma palavrinha quanto a isso:
Primo Levi narra [logo no início do seu "A trégua"] que assim que foi liberto do campo de concentração de Auschwitz pelos soviéticos, viu nos olhos dos soldados soviéticos algo que não via no olhar dos soldados alemães:
Vergonha.
Os soldados soviéticos sentiram vergonha - não de si, mas pelos alemães - ao se depararem com o horror de Auschwitz.
E não podia ser diferente. O fascismo é a ausência de vergonha - não somente da própria, mas da vergonha "alheia". O fascista não se escandaliza, não enxerga limites e interdições morais, seja em si, seja nos outros.
O fascismo só se cria no meio de uma sociedade desavergonhada, no meio de gente desavergonhada. É necessário que aprendamos a ter vergonha. É preciso ensinar as pessoas a terem vergonha. É forçoso fazermos as pessoas passarem vergonha.
O "eu avisei" é, nesse sentido, pedagógico. As pessoas precisam passar vergonha em razão de suas ações errôneas, por suas ações censuráveis - como, por exemplo, dar apoio a quem promove toda a sorte de discriminações.
As pessoas precisam perceber o quão cegas se encontravam, precisam perceber que a barbárie estava diante de seus olhos, e elas, estúpidas, se negaram, culpavelmente, em enxergar.
É imperioso que se jogue isso na cara delas.
Vergonha. A política tem que ter vergonha. Só há decência e responsabilidade onde há vergonha, vergonha própria e vergonha alheia.
Acréscimo [1]: certamente que eu não sugiro aqui que se deva "humilhar" as pessoas. Uma pessoa envergonhada é diferente de uma pessoa humilhada - ainda que a segunda possa ser, às vezes, as duas ao mesmo tempo. É preciso saber usar o "tom", ter um pouco de tato e de noção.
A questão, para mim, é demarcar aos nossos irmãos e irmãs que há coisas inaceitáveis e censuráveis, que não se tratam de simples erros.
Se eu faço um cálculo matemático e por uma desatenção ou ignorância qualquer da fórmula dou como resultado um produto falso, isso é [estritamente] um "erro" - e errar é humano, é passível, é aceitável.
No entanto, admitir que possa haver "sacrifícios humanos" [e o discurso e a política do ódio, o discurso e a política de discriminação são isso: a admissão de sacrifícios humanos] não é "erro", é "pecado".
É falta moral, é falta ético-política, não se opta por isso [pura e simplesmente] em razão de "ignorância", mas por "falta de vergonha". Claro que há de se distinguir as pessoas: eu me refiro àquelas que realmente tinham um mínimo de consciência do que o bolsonarismo se tratava.
E há muitas pessoas que tinham consciência da coisa - e essa consciência não pode ficar tranquila. A consciência tranquila é a pior assassina que há.
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