segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Soberania, Amazônia e aquecimento global


Queimada no Pará afeta paquistanês ou trumpista 

No começo da década de 1980, o brilhante brigadeiro Aldo Vieira da Rosa, professor emérito da Universidade Stanford (EUA) e especialista em ionosfera (parte superior da atmosfera terrestre), escreve um artigo para esta Folha alertando sobre a emissão de gases de efeito estufa e as consequências para o clima. Peguei o pião na unha. Voltei para os livros, para os artigos.

Conclui então que a combinação de fenômenos físicos responsáveis pelo efeito estufa atmosférico tinha como consequência inexorável o aquecimento da Terra e de sua atmosfera. E tais fenômenos decorriam necessariamente da combustão de materiais orgânicos, tais como petróleo e seus derivados, carvão, gás natural, madeira e outros produtos vegetais.

Meus cálculos mostravam que o volume de gases do efeito estufa que seriam produzidos pela queima total da floresta amazônica seria equivalente ao daquele emitido pelo petróleo já queimado somado às suas reservas medidas. Lancei-me à luta pelo esclarecimento da população e dos governantes.

Fui chamado de alarmista, inclusive por eméritos acadêmicos. Todavia, já no início do século 21 não havia um único cientista, reconhecido pela competência, que negasse o aquecimento global e sua gênese na atividade humana. As poucas vozes que negam hoje o aquecimento global e sua origem antropogênica ou são de pseudocientistas em busca de holofotes ou de sustento alimentar. Também é possível que sejam tão tapados intelectualmente que não consigam entender os fenômenos da física elementar envolvidos no aquecimento global.

Por falar em Jair Bolsonaro, o presidente do Brasil tem toda a razão em lutar veementemente pela soberania nacional. Mas voltemos à vaca fria.

O negacionismo científico relativo ao aquecimento global entre cientistas é hoje zero. De cerca de 25 mil artigos sobre o assunto, publicados de 2014 a 2016, apenas 5 negam a natureza antropogênica do aquecimento global. E pode-se imaginar quais sejam suas obscuras motivações.

Não nego a soberania de meu vizinho sobre sua casa e seu quintal, mas peço a interferência da polícia se depois das dez da noite ele põe naquela altura o seu rock metálico.

Se pudéssemos manter em nosso espaço soberano as insidiosas moleculazinhas que emitimos quando pomos fogo em nossa mata, situada em nosso território nacional, então poderíamos falar em soberania. Mas acontece que essas danadas moleculazinhas são indisciplinadas. Não aceitam ordem unida. Elas e seus efeitos nocivos se espalham pela Terra. Uma queimada no Pará pode contribuir para matar um pobre paquistanês que nunca ouviu falar em Amazônia —ou um letrado alemão e até mesmo um americano trumpista.

As moléculas de gases de efeito estufa emitidas no Brasil não respeitam a soberania dos demais países do planeta. Eis por que essa soberania sobre a Amazônia tem que ser mais bem compreendida.

E não devemos esquecer o sábio ensinamento de Goethe: “Aquele que não se controla acaba sendo controlado”. A soberania sobre a Amazônia precisa ser conquistada. Só a mereceremos se a cultivarmos e a respeitarmos como verdadeiro patrimônio a ser conservado.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite
Físico, professor emérito da Unicamp, membro do Conselho Editorial da Folha e presidente do Conselho de Administração do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais)

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