domingo, 11 de outubro de 2020

Epidemia vai se arrastar e já pode ter matado quase 1 em 100 idosos de São Paulo

Pense em Maria, 109, que o coronavírus levou 


Duas mulheres de 109 anos morreram de Covid na cidade de São Paulo. A doença levou 46 paulistanos de cem anos ou mais.

A gente sabe que esta é uma peste ainda mais cruel com os idosos. As pessoas de mais de 65 anos são cerca de 75% dos mortos pela doença tanto aqui na cidade como no estado de São Paulo. Mas a gente vai bulir nas estatísticas por outros motivos e vê lá então que duas paulistanas de 109 anos morreram de Covid. É outra história.

Dá o que pensar: nessas mulheres, no paulistano de 104 anos que o vírus levou, nessa morte muitas vezes dolorosa e sempre solitária, de nenhuma despedida. Penso na minha avó Maria, que morreu aos 101, antes desta praga, que esteve muito bem até pouco antes de partir, quando então ainda cozinhava e teria ido à feira sozinha, se deixassem.

Penso nas outras Marias centenárias ou nem perto disso, todas muito ameaçadas pela indiferença geral e crescente, que não deve diminuir agora que São Paulo entrou na “fase verde” da epidemia.
Penso nos amigos e nos parentes do homem de Man Bac.

Ele viveu faz mais de 4 mil anos no que é hoje o Vietnã. Arqueólogos descobriram que esse homem sofria de um mal que o deixou paralisado da cintura para baixo desde antes da adolescência. Quase não podia mexer os braços, se tanto, ou se alimentar sozinho, mas sobreviveu pelo menos uma década depois do ataque da doença.

Sua gente cuidou dele, pessoas que não tinham quase nada, que viviam apenas de caça, pesca e talvez criassem uns porcos meio selvagens.

Há outras histórias assim, de neandertais de 45 mil anos atrás ou de indígenas da Flórida de 7.000 anos.
“E daí?”, diria um ogro tal como um desses que nos governam e que não são capazes de uma palavra compassiva, que dirá do sacrifício amoroso desses nossos parentes da pré-história.

Daí que a epidemia está longe de terminar. Ainda podemos nos redimir um pouco do nosso barbarismo. O vírus continua a matar diariamente cerca de 700 pessoas no Brasil. Na cidade de São Paulo, são mais de 20 por dia. Nenhuma doença mata tanto assim. As mais letais, infarto e pneumonias, levavam 20 paulistanos por dia antes da calamidade do vírus.

Pelo menos cerca 0,6% dos moradores de São Paulo com mais de 65 anos perderam a vida para a Covid. Ainda não está chocado? É pelo menos 1 de cada 169 paulistanos com mais de 65. Pode ser mais, se considerados também os casos suspeitos: 1 de cada 114.

Sim, o pico da doença nesta cidade aconteceu no início de junho, quando morriam em média 120 pessoas por dia por causa do coronavírus. Sim, como muita gente deve ter ouvido tantas vezes, o risco é muito baixo para quem tem menos de 50 anos. É baixo o risco de morrer, mas não o de espalhar morte, o que deveria ser muito sabido também.

Se o argumento mortal não basta, pense que, quanto mais a epidemia se arrastar, por mais tempo ficará travada a vida nas cidades e, assim, o ganha-pão de tanta gente, a mais pobre em particular.

A peste e esses tipos que nos governam fazem pensar também em Tucídides, o historiador, um grande escritor e também um militar. Lutou em guerra de verdade. Não passou a vida vadiando como escoteiro marmanjo até ser expulso da tropa por baixezas várias.

O quase sempre comedido Tucídides escreveu com horror e desamparo sobre os montes de mortos largados sem cerimônia, vítimas de uma praga sem remédio na Atenas de 430 a.C.

Pense nos gregos, pense no homem de Man Bac. Pense em “Maria”, 109, que o vírus levou e que um dia foi bela e jovem como você.


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