sábado, 20 de julho de 2019

O celular é uma tornozeleira eletrônica que nos prende nas cadeias do mercado


Admirável mundo novo

Mario Sergio Conti

A tecnologia digital ajuda os indivíduos e traz perigos para a sociedade.

Existem aplicativos para diminuir a pobreza. Mas só de indivíduos. Um deles, o BillGuard, manda um aviso ao celular toda vez que o usuário ultrapassa o limite estabelecido de gastos mensais.

Com base nos padrões de despesas de quem o adquire, ele lista produtos com desconto.

O iBag é radical. Ele é uma bolsa comum, dotada de sensores e conectividade, que se tranca quando quem a usa atinge o limite de gastos para aquele dia. Ela fica sem acesso ao dinheiro ou ao cartão de crédito dentro da bolsa.

Os dois exemplos parecem saídos do romance “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, que se passa em 2540. Mas estão no livro de não ficção “Big Tech: A Ascensão dos Dados e a Morte da Política” (Ubu Editora, 192 págs., R$ 49,90), um fascinante estudo da tecnologia digital.

Seu autor é Evgeny Morozov, um bielorrusso de 35 anos que vive nos Estados Unidos, onde é professor na Universidade Georgetown e colaborador de dezenas de jornais e revistas, da Economist à New Left Review.

Morozov admite que os dois itens possam ajudar a economizar. Podem, também, enriquecer os seus proprietários. O seu ponto não é nem a utilidade da tecnologia nem a sua lucratividade.

Sua tese é que a nova tecnologia é um extrativismo digital —a coleta de dados. A garimpagem visa saber o que e como os indivíduos compram. Eles são objetos, não sujeitos. Os dados são usados pelas próprias empresas de tecnologia —Google, Facebook, Uber, Amazon etc.— e vendidos a outras corporações.

O mapeamento de informações acelera o consumo. Ao contrário da mística da ciência aplicada, deflagrada por gênios da livre iniciativa —Steve Jobs, Bill Gates, Mark Zuckerberg, Jeff Bezos—, o que vingou foi o interesse corporativo.

O novo extrativismo deixou o velho para trás. Veja-se a Noruega, que enriqueceu tirando petróleo do mar. No primeiro semestre de 2017, as ações na Bolsa de apenas quatro empresas americanas de tecnologia —a Alphabet (que controla o Google), a Amazon, o Facebook e a Microsoft— passaram a valer mais que o PIB da Noruega.

A grande tecnologia, a Big Tech, está imbricada com a alta finança, que investe cada vez mais nela desde a crise de 2008. Só neste ano, o orçamento para tecnologia do JP Morgan foi de US$ 11 bilhões; do Bank of America, US$ 10 bilhões; do Citigroup, US$ 8 bilhões.

A Uber combina os capitais da velha e da nova economia. Seus maiores investidores são a Goldman Sachs, que beijou a lona na crise, e a zilionária casa real saudita, a maior produtora de petróleo do planeta. E a Uber pressupõe a deterioração dos transportes públicos, bancados por Estados.

Mas outra aliança privilegiada da nova tecnologia é, justamente, com Estados. Morozov diz que a potência mais dependente dela são os Estados Unidos, acossados pela China e pela Rússia. Os três usam os dados coletadas pela Big Tech para espionar e moldar o mundo.

Exagero? Relembre-se que o avião de Evo Morales foi detido na Áustria porque os EUA tinham informações de que Edward Snowden estava nele. Ou que o celular de Angela Merkel, assim como o de Dilma, foi grampeado. Ou que as companhias americanas de dados, como demonstrou Snowden, passam cópias de todos os emails para Washington.

Com isso, os países pobres perdem ainda mais a sua já combalida soberania. Para vigiar as fronteiras, o sacrossanto Exército de Caxias depende do Google Earth e do Google Maps. Desligado o satélite, bye-bye pundonor militar.

Isso na geopolítica. No plano privado, diz o autor, não há fronteiras de arame farpado. Pelo bom motivo de o celular ser uma tornezeleira eletrônica. Ele abastece empresas e nos prende nas cadeias do mercado.

Morozov comenta em “Big Tech” a derrama de mensagens de WhatsApp nas eleições brasileiras do ano passado. Elas “mostraram o alto custo a ser cobrado de sociedades que, dependentes de plataformas digitais e pouco cientes do poder que elas exercem, relutam em pensar as redes como agentes políticos”.

Daí o livro sustentar que o financiamento digital coletivo para, por exemplo, montar uma peça de teatro, não é usar a nova tecnologia em prol da arte. Ele é, isso sim, “um substituto inadequado para os orçamentos culturais que tiveram que ser cortados em razão das medidas de austeridade”.

Morozov argumenta que a esquerda não pode se dar ao luxo de ser tecnofóbica. Para ele, é premente introduzir a economia e a política na abordagem da tecnologia do admirável mundo novo.

Mario Sergio Conti

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