O que é um naufrágio pra quem mora no aquário?
Amo este jornal que você tem em mãos. E amo o ritual de abri-lo todo dia de manhã, pra espanto da minha filha, que não entende a graça dessas letrinhas tão pequenas sob fotos tão grandes de gente tão séria, e pra desgosto da minha conge, que não entende a graça de gerar essa quantidade de lixo por dia.
“É como se você jogasse um livro fora toda manhã.” Tento argumentar: “A gente também usa pro cocô do cachorro!”. Ao que ela argumenta, com razão, que a gente não tem cachorro.
Gosto tanto deste jornal que tenho feito campanha pra que as pessoas o assinem. Tem ótimos repórteres e cronistas espetaculares e quadrinistas geniais e articulistas de todos os espectros políticos excluindo o terraplanismo —que não precisa ser contemplado por ele já estar no poder.
Ledo engano. O editorial da Folha de ontem mostra que a cúpula do jornal continua acreditando no governo até debaixo d’água. O que é um naufrágio pra quem vive no aquário? A velhinha de Taubaté que escreveu o editorial segue confiante e esperançosa de que o governo está “na direção certa”. Faltou dizer pra onde. Pro quinto dos infernos, talvez.
Os números não parecem concordar com a Folha. Mas o que são números perto da fé? “É preciso tempo”, diz o editorial. Ou quem diz é Paulo Guedes. Já não sei, de tanto que o editorial parece um release. O aquário finge não saber que os cortes que ele elogia incidem sobre educação, ciência e meio ambiente.
Bolsonaro odeia a Folha —e já disse que, no seu governo, “não vai ter Folha de S.Paulo”. A Folha morde Bolsonaro, mas sopra Paulo Guedes, como se os dois não fossem a mesma coisa.
Paulo Guedes não se aliou a Amoêdo, Alckmin, Marina, ou qualquer liberal “republicano” e tem um motivo pra isso: ele sabe que não se cortam direitos sem um projeto autoritário e moralista.
Não à toa, o modelo de Paulo Guedes pra “modernizar o Estado” é o Chile de Pinochet. Ninguém nunca conseguiu tirar direitos sem prender oposição e matar pobre. Quando os direitos somem, logo logo começa a sumir gente.
Na véspera a Folha já tinha classificado de “uma grata surpresa” o tour em que Bolsonaro bajulou o ditador saudita que mandou matar jornalista.
“Temos muito em comum”, disse Bolsonaro sobre o príncipe. Levando em conta os passaralhos, um governo que mata jornalista pode poupar um trabalho pro jornal. Reduziria o inchaço.
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