domingo, 21 de julho de 2019

Pela cloaca


Luis Fernando Verissimo
Foi no século 19 que ir ao banheiro passou a ser uma atividade privada, sem trocadilho
Foi no século 19 que ir ao banheiro passou a ser uma atividade privada, sem trocadilho. Até então podia ser um ato social. Reis se reuniam com seus ministros sentados em “tronos” eufemísticos. Há quem diga que se deve à transformação da evacuação num hábito solitário, propício à leitura e à reflexão, o nascimento do pensamento moderno na obra de gente como Hegel, Marx, Nietzsche e etc.

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Paralelos históricos nunca são exatos e por isso sempre são suspeitos. Mas no século 19 está o começo de tudo que nos aborrece hoje, e que pode ser resumido como a falência do pensamento moderno, produto do iluminismo e das melhores intenções humanas, mas que escoou pela cloaca da História.

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A restauração pós-Bonaparte nasceu da frustração com a promessa descumprida da Revolução Francesa, que começou libertária e acabou no Terror. O que sobrou do fracasso das nossas melhores intenções foi essa sensação de insuficiência mental crônica, que nos condena a nem mudar o mundo nem aprender com a História. O socialismo “puro” nem foi puro nem deu certo onde foi mal aplicado. O capitalismo criminoso continua fazendo suas vítimas. A frustração envenenou tudo: da filosofia da História à teoria econômica.

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O espírito da Restauração depois do terremoto bonapartista também determinou uma mudança no pensamento econômico. Adam Smith, por exemplo, cuja obra antes da Revolução podia ser confundida com pregação reformista (ele era até citado por Tom Paine, o Che Guevara da Revolução Americana) incluía uma “Teoria do sentimento moral”, passou a ser o profeta da economia como uma ciência moralmente neutra – “aética” é o termo preferido – e um herói da reação, como é até hoje, 229 anos depois da sua morte.

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Enfim, somos todos filhos do século 19 – e da pior parte. Algo para pensar no banheiro.

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