sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Legítima Defesa



Wilson Ramos Filho

Ainda antes do segundo turno nas últimas eleições presidenciais a quase totalidade dos meus amigos alertava para as consequências previsíveis da eleição do jaguara. Desconfio, todavia, que poucos tiveram a integral antevisão do que realmente está acontecendo em nosso país. Apenas os mais pessimistas poderiam imaginar tanta destruição e a dimensão da enfermidade social que se constata.

A articulação entre milicianos, cristãos fundamentalistas, Direita Concursada e de operadores do Mercado produziu o que estamos vivenciando, com dolorida tristeza e com nostalgia dos bons tempos em que havia futuro.

Depois de anunciar a convocação de milicos de pijama para atuarem como batedores de carimbos no INSS (um absurdo lógico além de disparate jurídico) o presidente Bolsonaro resolveu desumanizar a esquerda, dizendo que não podemos ser tratados como “pessoas normais”. Na mesma linha, o secretário nacional da cultura brindou os brasileiros com a peculiar compreensão da realidade que sintetiza articulação reacionária acima mencionada falando ladeado pelo pavilhão nacional e pela cruz de Cristo.

A tentativa de considerar como não-humanos os inimigos a serem exterminados, valorizando os mitos fundantes da nacionalidade, não é nova. Aconteceu sob o fascismo europeu (contra judeus, ciganos, homossexuais e comunistas), na Armênia (contra os cristãos) e em Ruanda (contra os tutsis) produzindo milhões de mortos, em holocausto. Os inimigos podiam e deviam ser perseguidos, torturados, violentados, não eram seres humanos, não eram “pessoas normais”. Mereciam morrer.

As vítimas dos três maiores genocídios do século XX, curiosamente, mesmo depois do início dos massacres, não acreditavam que estavam acontecendo, pensavam se tratar de mera incontinência verbal de seus algozes. Deu no que deu.

Em breve nos surpreenderemos ao constatar tópicas reações fundadas na reciprocidade. Não se sabe quando, mas é certo que logo os bons-modos darão lugar à revolta, à rebelião, à insurreição. Espero que estas ocorram com violência proporcional aos ataques da milícia palaciana, dos cristãos radicais, dos funcionários públicos que destroem o Estado de Direito e dos capitalistas insaciáveis em sua sanha destrutiva de direitos. Desejo que essas manifestações, individuais e coletivas, do Direito de Resistência não venham tarde demais e que ocorram com a contundência equivalente à das agressões sofridas. O pacifismo e a fé nas Instituições têm limites. Estas já não subsistem como as conhecíamos e aquele não mais se justifica, na opinião de muitos.

Alguém poderia objetar que me refiro desrespeitosamente ao jaguara. É verdade. Reajo com reciprocidade, condicionado por justificadas repulsa e emoção. Chumbo trocado não dói. Não vejo sentido em calar diante da violência dos coices que as quatro patas do monstro autoritário diariamente nos desferem. A reação, para ser válida, deve ser imediata, contemporânea à agressão e antes que se chegue ao que Hannah Arendt denominou como “ponto de não retorno” na escalada autoritária.

A legítima defesa consagrada na tradição jurídica dos povos, ao contrário do que um leigo poderia supor, fortalece o Estado de Direito, não atenta contra ele. Em sentido inverso, negar-se o direito à legítima defesa, imediata e proporcional à agressão, constituiria equivocada negação da ordem jurídica. E do bom-senso.

O discurso do responsável brasileiro pela cultura que está nas redes sociais parafraseia um dos ideólogos do nazismo. Não é coincidência, é reiteração. Cabe observar, no conforto da distância histórica, que não bastaria ter apeado Goebbels naquela oportunidade, pois Hitler continuaria lá. A queda do ministro não significaria grande coisa. E se tivesse havido um movimento “Fora Hitler” depois de iniciado o extermínio de seus “inimigos internos” a reivindicação não teria êxito. A sociedade na segunda metade dos anos trinta já havia sido infestada culturalmente pelos valores nazistas, o judiciário alemão não conseguia existir de forma distinta daquilo que preconizava Carl Schmitt, os cristãos eram estimulados nas igrejas a apoiarem o Führer, os empresários financiavam o delírio coletivo. O ponto de não retorno havia sido ultrapassado.

Quando a magistratura turca deixou de punir os primeiros assassinatos de cristãos foi a senha para que, munidos de martelos e porretes, os mercenários curdos financiados pelos empresários otomanos iniciassem a solução final para o “problema armênio” sob as bençãos do clero muçulmano. Em Ruanda não foi diferente. Os hutus, munidos de facões, atiçados pelos meios de comunicação, em apenas 40 dias, caçaram e exterminaram mais de um milhão de homens, mulheres e crianças, sem remorsos, os tutsis não eram “pessoas normais”, não eram seres humanos, eram baratas. Nesses três sombrios momentos da história o que mais surpreende é a passividade das vítimas, a ausência de reação eficaz e oportuna. Quando foi esboçada era tarde demais e acabou acelerando os massacres, acirrando os ódios, aumentando a violência. O ponto de não retorno havia sido ultrapassado, já não era possível resistir, a legítima defesa não podia mais ser exercida.

Wilson Ramos Filho (Xixo), doutor, é professor na UFPR e preside o Instituto Defesa da Classe Trabalhadora.

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